sábado, 7 de outubro de 2017

MACHADO DE ASSIS (1839-1908) E O ROMANCE DOM CASMURRO (1899)




Márcio Alessandro de Oliveira[1]

Objetivo geral: Expor, em linhas gerais, os fatores históricos, econômicos, sociais e biográficos que condicionaram a obra de Machado de Assis, com ênfase no romance Dom Casmurro. (Crítica ao objetivo: Na aula de Literatura, deveria o texto literário ser o centro de gravidade das atenções, mas ele deve o que é ao tempo em que viveu o autor.)
Objetivos específicos:
: resumir a vida de Machado de Assis, cujas experiências lhe condicionaram a prosa;
: enumerar suas obras com datas de publicação, dividi-las em fases e apontar suas características;
: registrar o contexto histórico de Machado, que condiciona a literatura (não é só o contexto histórico que condiciona a literatura: para Tzvetan Todorov, a vida do autor também faz isso);
: apontar os elementos do conteúdo e da forma do romance sem deixar de considerar o momento histórico de sua produção e de sua publicação.
Avaliação formativa: debate sobre o romance Dom Casmurro.
Pré-requisito: leitura prévia do supracitado romance.

         
PARTE I: JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS (1839-1908)

1.     Dados biográficos:

Nascido e criado no Rio de Janeiro em 21/6/1839 (nasceu no Morro do Livramento).

Origem humilde: pai pintor (de ascendência africana) e mãe lavadeira (de ascendência portuguesa).

Perdeu o pai, a mãe e a irmã e foi criado pela madrinha.

Não teve ensino regular: aprendeu a ler em casa e exerceu a autodidaxia em bibliotecas.

Foi tipógrafo, revisor, contista, cronista, crítico literário e teatral e romancista.

Começou a escrever por volta de 1855, ano da publicação de seu primeiro poema, intitulado Ela.

Ganhou a vida no serviço público.

Era epiléptico, gago e estigmatizado por ser mestiço e mulato (o que dificultou seu casamento) e enfrentou críticas severas do sergipano Sílvio Romero, que antipatizava com Machado. Este teria feito críticas duras a um poema de Sílvio Romero, críticas às quais o sergipano não perdoava.

Seguindo o exemplo da França, fundou a Academia Brasileira de Letras na persuasão de que os escritores poderiam se livrar da imagem de boêmios e desequilibrados deixada pelo Romantismo; assim, poderiam ser vistos como intelectuais sérios e preocupados com a sociedade.

Era ateu e recusou a extrema unção.

2.   Obras conhecidas:

2.1. Romances:

2.1.1. Fase romântica (fase de aprendizagem):

Ressurreição (1872);
A mão e a luva (1874);
Helena (1876);
Iaiá Garcia (1878).

2.1.2. Características:

narrativa linear;
narrador observador onisciente;
personagens de perfil psicológico menos complexo.
         
2.1.3. Fase realista (fase de maturidade):

Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880-1881);
Quincas Borba (1886-1891);
Dom Casmurro (1899-1900);
Esaú e Jacó (1904);
Memorial de Aires (1908).

2.1.4. Características:

narrativa não linear e com digressões;
uso do narrador-personagem;
personagens com vícios (e algumas virtudes);
participação do leitor.
         
2.2. Contos:

Contos fluminenses (1870);
Histórias da meia-noite (1873);
Papéis avulsos (1882);
Histórias sem data (1884);
Várias histórias (1896);
Páginas recolhidas (1899);
Relíquias de casa velha (1906).

2.3. Poesias:

Crisálidas (1864);
Falenas (1870);
Americanas (1875);
Poesias completas;
Ocidentais (1901).

3. Escola literária (estilo de época):

            Machado de Assis, um autor canonizado, é enquadrado, com ressalvas, na escola do Realismo, que começa no Brasil em 1881 com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, ao passo que o Naturalismo já havia começado em 1880, com a publicação do romance O Mulato, de Aluísio Azevedo.

3.1.  Realismo:

            O Realismo (com inicial maiúscula) é a escola literária da segunda metade do século XIX. Rejeitando a arte pela arte, opôs-se ao movimento romântico. Apegava-se à objetividade, e achava que a literatura deveria ter uma preocupação social. Nos romances realistas, as personagens não são idealizadas, pois têm defeitos e qualidades. Os autores realistas pautavam-se pela verossimilhança, ao passo que os naturalistas viam o ser humano como um produto biológico, motivo por que lhe atribuíam um caráter animalesco (zoomorfismo). Pode-se dizer que todo naturalista era realista, mas nem todo realista era naturalista. Também não se pode dizer que um autor dorme romântico e acorda realista: as datas apenas são marcos que norteiam as classificações. No caso do autor de Dom Casmurro, é mais fácil dizer o que ele não é do que dizer o que é. Não se sabe se o próprio Machado se considerava realista, mas é certo que censurava o naturalismo.

3.1.1.  Surgimento:

            Europa → Obra inaugural: Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert (1840-1902), francês.
            Brasil   → Obra inaugural: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis (1839-1908).

4.  Contexto histórico da Europa e de outras partes do mundo:

Revolução Científica;
Segunda Revolução Industrial (êxodo rural; exploração indiscriminada do proletariado);
Belle Époque (Bela Época) (burguesia como classe dominante);
puritanismo vitoriano (no caso da Inglaterra);
liberalismo econômico (ideias liberais econômicas prevalecem sobre as outras ideias da Revolução Francesa);
preocupação com a infância (fruto da ascensão da burguesia);
neoimperialismo praticado pelos Estados nacionais;
Revolução Meiji, no Japão (1868-1900);
surgimento de quatro ciências modernas: Antropologia, História, Psicologia e Sociologia.

5.  Contexto histórico do Brasil:

Segundo Império (D. Pedro II) (1840-1889);
Belle Époque (Bela Época);
ausência quase total de industrialização (que só seria realmente implementada depois da crise do café, causada pela crise de 1929, o que talvez sugira que o Brasil, no tempo de Machado de Assis, ainda era um país predominantemente rural);
classe média urbana;
luta pela abolição da escravatura;
movimento republicano, marcado pela Revolução Farroupilha (1835-1845);
inauguração da primeira ferrovia do Brasil em 1854 (com trinta anos de atraso em relação às ferrovias do Reino Unido), que ligava o porto da localidade hoje conhecida como Mauá (bairro de Guia de Pacobaíba, 5º Distrito do município de Magé, RJ) à localidade que hoje corresponde ao 6º Distrito de Magé e também a Petrópolis, que faz limite com Imbariê, 3º Distrito de Duque de Caxias, e Inhomirim, 6º Distrito de Magé, distritos limítrofes entre si que correspondem à antiga Vila Estrela;
Guerra do Paraguai (1864-1870), que é um dos conflitos englobados pela questão do Prata, e de que participou Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), que, por cumprir o dever com afinco, era caxias, o que lhe rendeu a alcunha de Duque de Caxias, nome do município em que fica seu local de nascimento: uma antiga fazenda (a fazenda São Paulo) transformada em museu no bairro Taquara, bairro de Imbariê, 3º Distrito de Duque de Caxias;
Lei Áurea (1888);
Proclamação da República (1889).

6.  Ideias científicas, filosóficas e religiosas:

6.1 Europa:
Cientificismo (valorização da ciência);
Marxismo (socialismo científico e história da humanidade como a história da luta de classes), de Karl Marx (1818-1893) e Friedrich Engels (1820-1895), alemães;
Determinismo, de Hipollite Taine (1828-1893), francês;
Positivismo, de Auguste Comte (1798-1857), francês;
Evolucionismo, de Charles Darwin (1809-1882), inglês;
Kardecismo, de Alan Kardec (1804-1869), francês.
   
            Observações:

            Não se incluiu a teoria de Sigmund Freud (1856-1939), que nasceu quando Machado já era escritor. Em termos de influência ou intertextualidade, a importância do pai da Psicanálise para os estudos machadianos é muito remota ou praticamente nula. O primeiro livro de Freud deve ter sido publicado em 1900, no último ano do século XIX, portanto. Machado morreu em 1908. Além disso, as principais obras do autor brasileiro já tinham sido publicadas antes que fossem divulgadas as ideias de Freud.
Outro pensador excluído foi Friedric Nietzsche (1844-1900), filósofo ateu. Embora seja possível estabelecer semelhanças entre algumas ideias de Machado de Assis e algumas do autor nascido na Prússia, seriam necessárias pesquisas que confirmassem ou negassem que o brasileiro leu Nietzsche.
De qualquer forma, Machado deve ter conhecido ideias materialistas, que não são exclusivamente marxistas, posto que ao materialismo dialético, de Marx, é anterior o materialismo mecanicista. É que, graças a Imanuel Kant (1724-1804), haviam surgido “duas linhas divergentes entre os filósofos posteriores. De um lado, os materialistas (Feuerbach) e os positivistas (Comte) [...]. De outro, os idealistas (Fichte, Schelling e Hegel) [...]” (ARANHA e MARTINS, 1986, p. 179).
Por mais que o marxismo se opusesse à visão positivista de mundo, o fato é que as concepções científicas acima listadas, além de racistas, eram tão materialistas quanto o marxismo, o que de certo modo as aproxima do pensamento de Marx, ao qual se opunha Rui Barbosa, que viveu no tempo de Machado de Assis. Se a preocupação social de Machado de Assis e sua determinação de mostrar que os escritores deveriam cumprir um papel relevante na sociedade foram influenciadas por ideias marxistas, coisa é que exige investigação.
O materialismo mecanicista, até onde sei, dizia que o pensamento era uma secreção do cérebro, um subproduto biológico, portanto. Isso pressupunha que o ser humano não tinha nem sequer um princípio de livre-arbítrio: ele era programado, por assim dizer, por forças biológicas, de modo que a ele só restava cumprir seu destino sem alterar a realidade que o molda ou o determina. Marx, no entanto, usa a dialética de Hegel para formular o materialismo dialético, o qual, usado nos estudos de História, constituía o materialismo histórico.
Ao contrário do materialismo mecanicista, o materialismo de que fala Marx admitia que o ser humano pode transformar a realidade. Marx faz apenas uma ressalva: diz que as ideias (como leis, projetos de leis, artes, educação e ciências) é que são determinadas pelas condições materiais de existência (alimentação, produção de alimentos, distribuição de água, luz e gás, moradias, saneamento, etc.), e não o contrário. Nessa perspectiva, a ideia não move a sociedade nem a História primeiro: as condições materiais de vida é que fazem isso primeiro. Um exemplo é a entrada das mulheres no mundo do trabalho: essa entrada é fruto das lutas feministas, mas não foi a ideia que alterou a realidade primeiro: foi uma condição histórica que permitiu a implementação de uma ideia: a Segunda Guerra Mundial. Assim, uma ideia, que faz parte da superestrutura, formada pelas leis, pela religião, pela moral, pelas artes e pelas ciências, pode exercer efeito sobre a infraestrutura, formada pelas condições materiais de existência, que são as condições de produção de mercadorias e serviços e as condições de habitação. Por isso acredito no poder transformador da literatura: ela pode retroagir sobre a realidade de que se serve e que a molda (um temor de autoridades que perseguiram autores ao longo da história, como Tomás Antônio Gonzaga e Jorge Amado). Contudo, está claro que as ideias não explicam a realidade: é a realidade que explica as ideias.
Mais um exemplo: Marx dizia que toda religião é determinada pelas condições materiais e sociais de seus adeptos. Dessa forma, não é o bramanismo que determina as castas da sociedade indiana: é a própria divisão da sociedade indiana em castas que determina a criação de uma religião que seja um reflexo dessa divisão e que legitime essa mesma divisão. E a religião determina a manutenção do que a originou: as condições materiais de existência indianas, o que prova que as ideias podem influenciar sua origem, ou seja: podem influenciar as condições materiais de vida. Como muitas pessoas confundem Deus com sua própria religião e abominam as outras religiões, Marx, creio eu, valia-se de seu postulado para combatê-las devido ao fato de elas confirmarem o poder e a injustiça ao invés de combatê-los por causa da promessa de uma vida melhor após a morte; daí a sua famosa frase: “A religião é o ópio do povo”.
Outro exemplo é o kardecismo. Se Marx tivesse de comentar os livros de Kerdec, que, além de possivelmente ter sido médium de si mesmo, conforme a teoria do inconsciente, de Freud, também viveu no século XIX e nele as divulgou, diria que não é o plano espiritual que determina a vida terrena: ao contrário, é a vida terrena que determina a doutrina kardecista, baseada em muitos elementos que só existiam no tempo de Kardec, como a teoria da evolução. O sistema de castas indiano, até onde sei, não permite o progresso nem a ascensão social pela livre iniciativa na encarnação em o que o indivíduo está na parte mais baixa da hierarquia social e econômica. O kardecismo, ao contrário, acredita no progresso, e faz isso justamente no tempo do Positivismo e da teoria de Darwim, que é também o tempo em que a burguesia, defensora da livre iniciativa e do empreendedorismo, é a classe dominante. Como tal, ela vai impor às demais classes uma ideologia segundo a qual todos podem progredir com a livre inciativa de modo a racionalizar e mascarar as injustiças sociais que provoca e que atribui à “incompetência” e à “falta” de esforço dos que não lutam dentro da meritocracia.
Em resumo, o materialismo dialético se dá na forma da relação entre infraestrutura e superestrutura: esta é gerada por aquela, mas a segunda pode influenciar a primeira.
O materialismo histórico também é dialético porque consiste na criação de teses, antíteses e sínteses (como propunha o modelo da dialética de Hegel, do século XVIII) em diferentes fases históricas. Desse modo, o cidadão grego seria a tese, o escravizado, a antítese e o feudalismo medieval, a síntese histórica do conflito entre senhor e escravizado. Da mesma forma, o suserano seria a tese a que se opõe uma tese oposta (a antítese): o vassalo. A síntese do conflito medieval seria o modelo econômico conhecido como capitalismo, formado por uma classe não escravizada, mas sim assalariada. Ela vende a força de trabalho à classe dominante: a burguesia, que substituiu o lugar de classe dominante da nobreza, que desde o Despotismo Esclarecido (século XVIII) ou talvez antes dele via, com o Iluminismo, a decadência do Antigo Regime. Por isso Marx dizia que a história da humanidade é a história da luta de classes (senhor e escravizado, suserano e vassalo, assalariado e burguês), e por isso ele também formou um conceito de ideologia segundo o qual ela é uma forma de mascarar a realidade, uma forma de mascarar que se pauta pela reprodução e manutenção das ideias da classe dominante.
Todos estes comentários a respeito de Nietzsche e Marx têm uma razão de ser: pode-se dizer que, como Machado, eram ateus.

6.2. Brasil:
Escola Filosófica de Recife (1870), de orientação positivista;
Alguns pensadores: Tobias Barreto (1839-1889), sergipano; Sílvio Romero (1851-1914), sergipano.

            Observações:

            O Positivismo era um sistema filosófico criado por Comte, considerado o pai da Sociologia. Basicamente, ele consistia em dizer que a humanidade era dividida em três estágios históricos, do qual o último era o do tempo de Comte, que acreditava que no seu tempo eram desnecessárias as revoluções: bastava dar ordem ao progresso (daí o mote da bandeira do Brasil), progresso que, na economia (mais especificamente: no mercado), levou a sociedade à exploração da classe trabalhadora. O Positivismo é, portanto, uma forma ideológica de reprodução do pensamento das classes dominantes, ainda que dissesse que queria que a ciência sociológica fosse objetiva e neutra como as ciências naturais supostamente eram. O princípio de neutralidade, cujo pilar central era o de que a Sociologia positivista era isenta ou livre de ideologia, já era em si um princípio ideológico e, portanto, não-neutro. Chegou a virar religião no Brasil, em que ainda hoje se veem fortes traços do Positivismo, que produz uma visão segundo a qual a história da humanidade é feita por “grandes” nomes, como o de Duque de Caxias, e por “grandes” feitos dos “heróis”, e não pela luta de classes. (Isso não é muito diferente do que acontece nos Estudos Literários, em que o cânone ainda é pautado pela diferença entre os “grandes” autores e os que “não” são “grandes”.)
O Determinismo, a seu turno, acreditava em três fatores determinantes: o meio, o momento histórico e a raça (etnia). Sílvio Romero, inimigo declarado de Machado de Assis, baseou-se nisso no seu trabalho de historiografia e crítica literárias. Pode-se dizer que ambas as doutrinas “científicas” são baseadas no cientificismo. Machado de Assis satiriza Augusto Comte com o personagem Quincas Borba, formulador do Humanitismo.
Quincas Borba não aparece em Dom Casmurro, mas é um dos mais marcantes personagens de Machado de Assis. Aparece em Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, outros dois romances machadianos. É ele uma crítica alegórica a Augusto Comte; o Humanitismo, uma sátira bem ácida ao Positivismo (que até hoje está na bandeira do Brasil).
De acordo com o Humanitismo, cada um de nós seria parte de Humanitas. Alguns estariam na parte mais alta, outros, na mais baixa; e, quando alguém morre, então Humanitas perdeu uma parte de si como quem de si tira unhas dos pés. No dizer de Quincas Borba, rigorosamente não há morte, pois o desaparecimento do indivíduo não é o fim da espécie de que fazia parte. Dentro dessa lógica, que é absurda, duas tribos poderiam encontrar uma plantação de batatas. Ao invés de dividir, cada uma delas brigaria, pois a divisão das batatas não daria saciedade a ambas as tribos por serem insuficientes as plantações e as duas morreriam de desnutrição. Para preservar a espécie de uma das tribos, seria necessária uma guerra, que sempre se torna tema de hinos e desfiles militares de vitória. Daí uma famosa frase machadiana, que diz: “Ao vencedor as batatas”. Trata-se da sobrevivência do mais forte, um dos pilares do fascismo, que surgiu depois do tempo de Machado de Assis.

PARTE II: MACHADO DE ASSIS (1839-1908) E DOM CASMURRO (1899)

1.     Período de produção do romance e ano de publicação:

1898-1899.

2. Elementos do romance:

2.1. Elementos do conteúdo: enredo, tempo, espaço e personagens:

2.1.1. Resumo:

            A narrativa apresenta o seguinte conflito: Bentinho (Bento Santiago) não quer ser padre por falta de vocação e por amor a Capitu, amor que José Dias, agregado da família de Bentinho, havia notado, e que a mãe do rapaz não nota por considerá-lo uma criança; mas ela está disposta a cumprir a promessa: fazer do filho um seminarista e um padre.
            A história, no entanto, começa a ser narrada por um Bentinho já velho, apelidado de Casmurro pelos conhecidos (casmurro significa teimoso).
            O protagonista chega a ir para o Seminário; assim, conhece Escobar, seu melhor amigo. Contudo, Bentinho sai do Seminário graças à intervenção de José Dias e se torna bacharel em Direito. Casado com Capitu, mantém a amizade com Escobar e a esposa deste.
Passado algum tempo, Escobar faz uma visita a Capitu na ausência de Bentinho, que mais tarde lamenta a morte de Escobar na praia. Durante o velório, Capitu contempla o defunto, o que explica o fato de o narrador-personagem dizer que ela tem olhos de ressaca, em contraste com o dizer de José Dias, para quem ela tinha olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Com o passar de alguns anos, Bentinho nota que seu filho é muito parecido com Escobar...
O clímax do romance é produzido quando Bentinho cogita de envenenar a criança, a quem ele diz não ser pai dela. Capitu escuta e interpela Bentinho, que fora entreouvido. Diz ele: “Há coisas que não se dizem”, ao que Capitu responde: “Há coisas que não se dizem só pela metade”.  Bentinho, então, confessa as suas suspeitas. Capitu vai embora com o filho e nunca mais vê o marido.
Teimando na suposta traição de Capitu, Bentinho se pergunta se ela se desvirtuara ou se sempre fora quem era, como a polpa da fruta dentro da casca.

Comentários:

            Pode-se dizer que, pelo menos na cabeça do protagonista, um anti-herói, existe um triângulo amoroso formado por Capitu (que era mais mulher do que Bentinho era homem), Bentinho e Escobar.
Prevalece o ponto de vista de Bentinho, já que é ele quem narra a história; contudo, sua imaginação é febril: basta lembrar o episódio em que ele imagina uma visita do Imperador, que iria convencer a mãe de que ele, Bentinho, não deveria ser padre. Repita-se que era um casmurro (teimoso), o que dá margem à ambiguidade. Além disso, a traição de Capitu não pode ser confirmada por não haver o ponto de vista dela.
Três fatores levam Bentinho a se ver num triângulo amoroso: 1. uma visita de Escobar na ausência de Bentinho, conforme relato de Capitu; 2. o modo como Capitu olha para o cadáver de Escobar no velório (ele, curiosamente, havia morrido no mar, o que remete o leitor aos “olhos de ressaca” de Capitu); 3. a semelhança física entre o filho de Capitu e Escobar, amigo que Bentinho conheceu no seminário (tal semelhança pode ser fruto da imaginação de Bentinho Santiago, que fora capaz de imaginar que o próprio Imperador do Brasil poderia livrá-lo do compromisso de virar padre).
O romance permite críticas ao casamento e às conclusões que as pessoas tiram com base em suas convicções e impressões, e não com base na apuração dos fatos;
            Pode ser importante para as leitoras o fato de o século XIX ter sido o século da Belle Époque e do casamento como consolidação dos valores burgueses, assimilados pela classe média, uma vez que a fidelidade feminina era uma forma de garantir a reprodução das linhagens masculinas e a transmissão do patrimônio privado em forma de herança. Da mesma forma, pode-se dizer que há uma crítica à sociedade pelo fato de Capitu não ter um status social equivalente ao de Bentinho: ela não é tão rica quanto ele: é de uma família mais modesta e, portanto, com menos prestígio social. Tratar-se-ia, então, de uma crítica à ascensão social na forma do casamento feito por interesse.
Por fim, é importante frisar mais alguns aspectos do texto:
            Bento Santiago chega a se comparar com Otelo, personagem homônimo de uma peça de Shakespeare que mata Desdêmona, esposa considerada infiel, embora ela não o fosse. Também admite que não tem boa memória. Além disso, tem, como já ficou dito, muita imaginação, o que sugere que ele se deixa levar por ela. A imaginação é requisito de um profissional da palavra, que depende da retórica, calcada em certa criatividade, necessária na hora de convencer o interlocutor. Por isso, o leitor está diante de uma crítica a duas profissões que eram muito do gosto da elite brasileira do século XIX: o padre e o advogado. Contudo, Machado, conhecedor de seu tempo, sabia que o público veria Capitu como adúltera, pois, numa época machista e desprovida do exame de ADN (DNA), seria difícil uma interpretação diferente. Por outro lado, Machado também não era só conhecedor: era acima de tudo um crítico de seu tempo, razão por que podemos legitimar a ambiguidade que deve ter comparecido na sua produção intencional de sentido, embora fosse comum que antigamente se encontrassem sinopses em que se lia: “O traído Bentinho recorda sua vida de casado...”. Hoje, uma análise que contemple a cabeça do século XXI e a do fim do século XIX permite que digamos que qualquer interpretação é válida, desde que permaneça tão só no terreno das possibilidades, e não no das afirmações. Em uma análise baseada na mentalidade contemporânea, é possível ver uma crítica ao machismo, posto que Bentinho é teimoso. Vive sozinho, longe da esposa, que foi para longe, e do filho, que morre numa expedição. Bento chega a confessar ao leitor que gastaria dinheiro só para não tornar a vê-lo.
Hoje, três são as possibilidades de interpretação: 1. infidelidade de Capitu; 2. machismo e ciúme exagerado de Bentinho; 3. e ciúme de Bentinho em relação a Escobar, com quem Bentinho ficava às escondidas no tempo do seminário, talvez por estarem apaixonados um pelo outro...

2.2. Elementos da forma: capítulos de prosa com fluxo psicológico, e não (apenas) cronológico:

            Os capítulos são curtos e seguem um fluxo psicológico, e não apenas temporal. Talvez o romance Dom Casmurro não chegue a ser tão complexo quanto Memórias Póstumas de Brás Cubas, em que o narrador também é o personagem principal, mas podemos notar um quê de fluxo psicológico que começa pelo agora para mostrar o antes, que podem estar embaralhados, o que não seria muito diferente de algumas séries televisivas que vemos hoje, como Era uma vez (Once Upon a Time). Certo é que Machado de Assis fez que Bentinho comentasse a história (atitude idêntica à de Brás Cubas, que interage com o leitor dirigindo-se a ele para comentar, e não propriamente narrar, a história e até para julgar o leitor), uma ação idêntica à do protagonista do filme Curtindo a vida adoidado.

3. Características do romance:

3.1. Características condicionadas pelos fatos históricos:

            Michel Foucault (1999, p. 117-8) explica a importância do casamento no livro História da sexualidade (volume I):

a burguesia [...] olhou [...] para o lado de sua descendência e da saúde do seu organismo. O “sangue” da burguesia foi o seu próprio sexo. E não se trata de um jogo com as palavras; muitos dos temas particulares aos costumes de casta da nobreza se encontram de novo na burguesia do século XIX, mas sob as espécies de preceitos biológicos, médicos ou eugênicos; a preocupação genealógica se tornou preocupação com o legado; nos casamentos, levaram-se em conta não somente imperativos econômicos e regras de homogeneidade social, não somente as promessas de herança como as ameaças de hereditariedade; as famílias portavam e escondiam uma espécie de brasão invertido e sombrio, cujos quartéis infamantes eram as doenças ou as taras da parentela — a paralisia geral do avô, a neurastenia da mãe, a tísica da caçula, as tias histéricas ou erotômanas, os primos de maus costumes.

3.1.2. Características possivelmente condicionadas pela vida do autor:

            No que concerne à representação da mulher em Dom Casmurro, é importante frisar a ambiguidade de Capitu. Entretanto, a desconfiança de Bentinho pode ter um fundo psicológico e biográfico, pois, a ser verdade o que diz Érico Verissimo em Breve História da Literatura Brasileira, Machado, por ter sido “feio”, gago e estigmatizado como mulato, não era um sucesso entre as mulheres, razão pela qual poderia acrescentar um quê de misoginia à sua obra. No supracitado livro, Veríssimo (1996, p. 72) chega a mencionar o episódio seguinte:

Há um pequeno incidente que nos dá uma ideia de sua susceptibilidade. Certo dia, durante uma festa, uma senhora tagarela dirigiu-se a ele sorridente: “Ora, senhor Machado, disseram-me que tinha uma terrível gagueira, Mas o senhor fala bastante bem. Não é tão má como dizem”. O rosto do escritor era uma máscara de pedra quando respondeu: “Calúnias, cara madame, apenas calúnias. Disseram-me que a senhora era meio tola, e agora vejo que não é tão tola como dizem”.

3.2. Palavras-chave:
Talvez possamos estabelecer as seguintes palavras-chave para o romance Dom Casmurro:

casamento; ciúme; imaginação exagerada; suposta traição.

Referências

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Gráfica Editora Brasileira LTDA, sem ano.

______. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Klikc Editora, sem ano de publicação.

______. Quincas Borba. São Paulo: Nobel, 2009.

______. Helena. São Paulo: Martin Claret, 2002-8.
      
BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira. Aula 14: Teoria da interpretação e Projeção. In: ______; FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros; FRANÇA, Júlio; MORAES, Anita M. R.. Teoria da Literatura II. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2013.

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 9. ed., revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

CHAUVIN, Jean Pierre. As fases e faces de Machado de Assis: homem, obra e crítica. In: ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Helena. São Paulo: Martin Claret, 2002-8.

COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral (vol. único). 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Mato. Literatura Brasileira. 17. ed.  São Paulo: Editora Ática, 2003.

FARINACCIO, Pascoal; SALGADO, Marcus Rogério Sampaio. Aula 10: Machado de Assis entre o local e o universal. In: ___ et al.. Literatura Brasileira III. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2013.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque.  13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988-1999.

FORTAREL, Jô.  Suplemento de leitura. In: ASSIS, Joaquim Maria Machado de.  Quincas Borba. São Paulo: Nobel, 2002.

INFANTE, Ulisses. Curso de Literatura de Língua Portuguesa. 1. ed.  São Paulo: Scipione, 2001.

MARTON, Scarlett. O homem que foi um campo de batalha.  In: NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. São Paulo: Martin Claret, 2009.

SOUZA, Roberto Acízelo de. Panorama dos Estudos Literários.  In: ______. História da literatura: trajetória, fundamentos, problemas.  São Paulo: É Realizações, 2014, pp. 17-71.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Trad. Maria Clara Correa
Castello. São Paulo: Perspectiva, 2017.

______. Como ler. In: ______. Poética da prosa. Trad. Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

TUFANO, Douglas. Estudos de Literatura Brasileira. 2. ed. São Paulo: Editora Moderna, 1978.

VERISSIMO, Érico. Breve história da literatura brasileira. 3. ed. Trad. Maria da Glória Bordini. São Paulo: Globo, 1996.



[1] Licenciado em Letras (Português e Literaturas) pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Estudos Literários pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor efetivo de uma rede pública de ensino.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

FERNANDO PESSOA (1888-1935)



Objetivo: Fazer um panorama da obra de Fernando Pessoa com base nas características gerais de sua produção literária e no contexto histórico.

Agradecimentos à professora Rosemary Gonçalo.

1.      Tripé pessoano:
conhecimento (busca pelo);
despersonalização na forma de heteronímia e fingimento (justificados pela busca do conhecimento e da plenitude cósmica, inalcançáveis quando o indivíduo se prende a um único ponto de vista);
sensacionismo.

2.      Principais heterônimos:
Alberto Caeiro (1889-1915);
Ricardo Reis (1887-?);
Álvaro de Campos (1890-?);
Bernardo Soares (?-?).

3.      Escola literária (estilo de época):
Modernismo.  (Fernando Pessoa fez parte da geração da revista Orpheu, de 1915.)

Em Portugal, o Modernismo trilhou, num momento inicial, as pegadas das chamadas estéticas finisseculares (especialmente do Simbolismo e do Decadentismo [...]), apropriando-se de suas propostas iconoclastas. De certo modo, pode-se dizer que as estéticas de fim de século representaram um primeiro passo para o surgimento das próprias Vanguardas Europeias, em si mesmas tão definidoras do movimento modernista (ALVES; SANTANA, 2014, p. 2).

4.      Contexto histórico global:
segunda ou terceira (?) revolução industrial;
Primeira Guerra Mundial;
Revolução Russa, de 1917;
totalitarismos: nazismo, fascismo, salazarismo e franquismo.



5.      Contexto histórico português:
Ultimatum Ultramarino;
intensificação da colonização dos territórios africanos;
início do movimento republicano (1908);
conflito entre monarquistas e republicanos;
implantação da República (1910);
ascensão e chegada ao poder de Antônio Salazar.



6. Fernando Pessoa e o conhecimento

É indispensável a leitura do estudo de abertura da Obra poética, publicada pela Nova Aguilar. Nesse estudo, menciona-se a questão do conhecimento, que permeia e condiciona toda a poesia pessoana. E uma das coisas que mais chamam a atenção é a importância de Kant e sua revolução epistemológica “heliocêntrica”, importância que se resume, se não me falha a memória, aos sentidos e ao homem. Kant era capaz de enxergar dialeticamente os acertos e os erros dos racionalistas e dos empiristas.

7. A obra

7.1 Fernando Pessoa ele mesmo (Fernando Pessoa ortônimo) (1888-1935)
Obra literária:
Mensagem;
Poesias;
Quadras ao gosto popular;
Cancioneiro.
Obra não-literária:
Obras em prosa.
Palavras-chave: No caso de Mensagem: pátria; sebastianismo; lirismo épico; heráldica. No caso de Poesias, Quadras ao gosto popular e Cancioneiro: melancolia.  
7.2 Alberto Caeiro (1889-1915)  (“Pensar é estar doente dos olhos.”)  (“Pensar em Deus é desobedecer a Deus,/ Porque Deus quis que o não conhecêssemos,/ Por isso se nos não mostrou...” (O Guardador de Rebanhos, VI.))
Obra literária:
O Guardador de Rebanhos;
O Pastor amoroso;
Poemas inconjuntos.
Palavras-chave: campo; bucolismo; vida ingênua e simples; mundo real-sensível; valorização dos sentidos (principalmente a visão).
Informações:
Teve apenas instrução primária.
Fernando Pessoa escrevia em seu nome “por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever”.
É curioso que Caeiro valorize tanto o sentido da visão, pouco prezado pela cultura judaico-cristã, já que ela dá mais valor à audição e ao ato de ouvir a voz de Deus. Talvez a explicação para isso seja o fato de o verbo to see (ver) significar entender em certas frases, assim como o verbo enxergar. Digo isso porque não considero só o fato de a busca pelo conhecimento permear a poesia pessoana, mas também que Fernando Pessoa recebeu uma educação formal em inglês, fora de Portugal.  Por isso não é difícil entender que o poeta tenha criado Alberto Caeiro e dado a ele essa visão de mundo.

7.3 Ricardo Reis (1887-?) (“Só os deuses socorrem/ Com seu exemplo aqueles/ Que nada mais pretendem/ Que ir no rio das coisas.”)
Obra literária:
Palavras-chave: paganismo; tranquilidade horaciana; epicurismo; carpe diem.
Informações:
Foi discípulo de Alberto Caeiro.  Formou-se em Medicina.  Exilou-se no Brasil por, como monarquista, não aceitar a República.
Fernando Pessoa escrevia em seu nome “depois de uma deliberação abstrata, que subitamente se concretiza[va] numa ode”.

7.4 Álvaro de Campos (1890-?)  (“Tenho febre e escrevo.”)
Obra literária:
Palavras-chave: futurismo; velocidade; máquina; sensacionismo; agressividade; modernidade; pessimismo; descrença; angústia; lucidez.
Informações:
Também foi discípulo de Alberto Caeiro.  Era engenheiro naval formado na Escócia.
Fernando Pessoa escrevia em seu nome quando sentia “um súbito impulso para escrever” e não sabia o quê.

7.5 Bernardo Soares
Obra: O livro do desassossego.
Palavras-chave:
Informações:

Exercícios:

Vamos ler alguns poemas de Fernando pessoa? Sugiro que você leia os poemas escolhidos e procure neles as características resumidas nas palavras-chave dos esquemas resumitivos acima. Boas leituras!



LIBERDADE

(Falta uma citação de Sêneca)

AI QUE prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

(Fernando Pessoa. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 188-9.)



POSSIBILIDADES DE INTERPRETAÇÃO

Minhas interpretações são as seguintes: Os que tinham liberdade para estudar eram os que tinham tempo livre, o ócio. Sêneca viveu num tempo em que só os cidadãos, que eram poucos, tinham tempo livre para os estudos; afinal, só eles eram livres, ao passo que os escravizados tinham de fazer o trabalho braçal. Infelizmente, o lugar de ócio (a escola) ainda é um privilégio. Minha avó paterna, por exemplo, não pôde ir à escola: tinha de trabalhar na roça. Ela falava com muito carinho do pai e da infância dela, embora não tivesse aprendido a ler. A alfabetização não era necessária ao trabalho realizado por uma pessoa nascida em 1918. Acho que muitos pais de alunos meus tiveram uma realidade idêntica à dela. Não vejo emprenho por parte de muitos alunos, nem interesse, nem gosto, nem senso de obrigação. É preciso que o aluno tenha consciência como juiz. Ele precisa criar autodisciplina e se autoavaliar. Até onde sei (ou até onde penso saber), a consciência como juiz é um dos ensinamentos de Sêneca, filósofo estoico. (O estoicismo, em uma de suas fases, valoriza o sacerdÓCIO e, portanto, o dever; por isso é o oposto do epicurismo, que busca o prazer.) Outra interpretação é a seguinte: o estudo e a literatura não são condenados nem inferiorizados pelo eu poético de Fernando Pessoa: eles seriam apenas símbolos que representariam o pedantismo, a desonestidade intelectual e a hipocrisia dos falsos cumpridores dos deveres, características de pessoas autoritárias como Salazar, o ministro que supostamente entende o que um dos versos menciona: as finanças. Hoje estamos vendo a ascensão do intelectual orgânico (o formador de opinião) que, só por ter diploma, é seguido e respeitado pelos leigos. (Hoje existe youtuber que faz isso sem diploma.) Esse é o caso de Mírian Leitão e Alexandre Garcia. Quanto aos versos em que é mencionado D. Sebastião, gosto de fazer um paralelo com Dilma: até hoje espero o retorno dela. Também poderíamos fazer uma interpretação superficial: o eu poético estaria seguindo a lógica do carpe diem; portanto, revelaria um certo hedonismo, como se fosse escravizado pelo próprio id.



PASSA UMA BORBOLETA por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.

(Alberto Caeiro. O guardador de rebanhos. In: Fernando Pessoa. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 224.)

MAR PORTUGUÊS

Ó MAR SALGADO, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosse nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

(Fernando Pessoa. Mensagem. In: ___. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 82.)

ONTEM À TARDE um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.

E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.

(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu — não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas)
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.

(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa — existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.

E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?

(Alberto Caeiro. O guardador de rebanhos: XXXII. In: Fernando Pessoa. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, pp. 220-1.)

ONTEM O PREGADOR de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.

Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles,
E não se cura de fora,
Porque sofrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!

Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam injustiça do mundo.
Mil passos que desse só para isso
Eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.

Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais
Para qual fui injusto —  eu, que as vou comer a ambas?

(Alberto Caeiro. O guardador de rebanhos: XXXII. In: Fernando Pessoa. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, p. 233.)

E HÁ POETAS que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem sei eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao solo pelas estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.

(Alberto Caeiro. O guardador de rebanhos: XXXVI. In: Fernando Pessoa. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, pp. 222.)

Referências bibliográficas:

ALVES, Ida; SANTANA, Rafael.  Aula 15: Almas indisciplinadas.  In: ______; BRAZ, Paulo; ANCHIETA, Marleide; CATTAPAN, Julio; CRUZ, Eduardo da; ERTHAL, Aline Duque; HELENA, Beatriz; MACHADO, Rodrigo; MENEZES, Raquel; VASCONCELOS, Viviane.  Literatura Portuguesa II.  Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2014.

______; BRAZ, Paulo.  Aula 18: Em torno de mim o mundo.  In:______.  Literatura Portuguesa II.  Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2014.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da Filosofia. Trad. Leonardo Pinto Silva. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

INFANTE, Ulisses. Curso de Literatura de Língua Portuguesa. 1. ed. São Paulo: Scipione, 2001.

OLIVEIRA, Ana Tereza Pinto de; REIS, Benedicta Aparecida Costa dos.  Minimanual Compacto de Literatura Portuguesa: teoria e prática. 1. ed. São Paulo: Rideel, 2003.

PESSOA, Fernando. Obra Poética. 4ª reimpressão da 9ª edição. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

______. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986.

WILTSHIRE, Maria Lúcia.  Aula 12: Mensagem da Terra ao Mar; Aula 13: Mensagem: Do mar ao Encoberto.  In:______; ERTHAL, Aline Duque; FERREIRA, Alba Valério Cordeiro; FILHO, Aderaldo de Sousa; SANTOS, Jane Rodrigues dos. Literatura Portuguesa I.  Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2013.