quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

FERNANDO PESSOA (1888-1935)



Objetivo: Fazer um panorama da obra de Fernando Pessoa com base nas características gerais de sua produção literária e no contexto histórico.

Agradecimentos à professora Rosemary Gonçalo.

1.      Tripé pessoano:
conhecimento (busca pelo);
despersonalização na forma de heteronímia e fingimento (justificados pela busca do conhecimento e da plenitude cósmica, inalcançáveis quando o indivíduo se prende a um único ponto de vista);
sensacionismo.

2.      Principais heterônimos:
Alberto Caeiro (1889-1915);
Ricardo Reis (1887-?);
Álvaro de Campos (1890-?);
Bernardo Soares (?-?).

3.      Escola literária (estilo de época):
Modernismo.  (Fernando Pessoa fez parte da geração da revista Orpheu, de 1915.)

Em Portugal, o Modernismo trilhou, num momento inicial, as pegadas das chamadas estéticas finisseculares (especialmente do Simbolismo e do Decadentismo [...]), apropriando-se de suas propostas iconoclastas. De certo modo, pode-se dizer que as estéticas de fim de século representaram um primeiro passo para o surgimento das próprias Vanguardas Europeias, em si mesmas tão definidoras do movimento modernista (ALVES; SANTANA, 2014, p. 2).

4.      Contexto histórico global:
segunda ou terceira (?) revolução industrial;
Primeira Guerra Mundial;
Revolução Russa, de 1917;
totalitarismos: nazismo, fascismo, salazarismo e franquismo.



5.      Contexto histórico português:
Ultimatum Ultramarino;
intensificação da colonização dos territórios africanos;
início do movimento republicano (1908);
conflito entre monarquistas e republicanos;
implantação da República (1910);
ascensão e chegada ao poder de Antônio Salazar.



6. Fernando Pessoa e o conhecimento

É indispensável a leitura do estudo de abertura da Obra poética, publicada pela Nova Aguilar. Nesse estudo, menciona-se a questão do conhecimento, que permeia e condiciona toda a poesia pessoana. E uma das coisas que mais chamam a atenção é a importância de Kant e sua revolução epistemológica “heliocêntrica”, importância que se resume, se não me falha a memória, aos sentidos e ao homem. Kant era capaz de enxergar dialeticamente os acertos e os erros dos racionalistas e dos empiristas.

7. A obra

7.1 Fernando Pessoa ele mesmo (Fernando Pessoa ortônimo) (1888-1935)
Obra literária:
Mensagem;
Poesias;
Quadras ao gosto popular;
Cancioneiro.
Obra não-literária:
Obras em prosa.
Palavras-chave: No caso de Mensagem: pátria; sebastianismo; lirismo épico; heráldica. No caso de Poesias, Quadras ao gosto popular e Cancioneiro: melancolia.  
7.2 Alberto Caeiro (1889-1915)  (“Pensar é estar doente dos olhos.”)  (“Pensar em Deus é desobedecer a Deus,/ Porque Deus quis que o não conhecêssemos,/ Por isso se nos não mostrou...” (O Guardador de Rebanhos, VI.))
Obra literária:
O Guardador de Rebanhos;
O Pastor amoroso;
Poemas inconjuntos.
Palavras-chave: campo; bucolismo; vida ingênua e simples; mundo real-sensível; valorização dos sentidos (principalmente a visão).
Informações:
Teve apenas instrução primária.
Fernando Pessoa escrevia em seu nome “por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever”.
É curioso que Caeiro valorize tanto o sentido da visão, pouco prezado pela cultura judaico-cristã, já que ela dá mais valor à audição e ao ato de ouvir a voz de Deus. Talvez a explicação para isso seja o fato de o verbo to see (ver) significar entender em certas frases, assim como o verbo enxergar. Digo isso porque não considero só o fato de a busca pelo conhecimento permear a poesia pessoana, mas também que Fernando Pessoa recebeu uma educação formal em inglês, fora de Portugal.  Por isso não é difícil entender que o poeta tenha criado Alberto Caeiro e dado a ele essa visão de mundo.

7.3 Ricardo Reis (1887-?) (“Só os deuses socorrem/ Com seu exemplo aqueles/ Que nada mais pretendem/ Que ir no rio das coisas.”)
Obra literária:
Palavras-chave: paganismo; tranquilidade horaciana; epicurismo; carpe diem.
Informações:
Foi discípulo de Alberto Caeiro.  Formou-se em Medicina.  Exilou-se no Brasil por, como monarquista, não aceitar a República.
Fernando Pessoa escrevia em seu nome “depois de uma deliberação abstrata, que subitamente se concretiza[va] numa ode”.

7.4 Álvaro de Campos (1890-?)  (“Tenho febre e escrevo.”)
Obra literária:
Palavras-chave: futurismo; velocidade; máquina; sensacionismo; agressividade; modernidade; pessimismo; descrença; angústia; lucidez.
Informações:
Também foi discípulo de Alberto Caeiro.  Era engenheiro naval formado na Escócia.
Fernando Pessoa escrevia em seu nome quando sentia “um súbito impulso para escrever” e não sabia o quê.

7.5 Bernardo Soares
Obra: O livro do desassossego.
Palavras-chave:
Informações:

Exercícios:

Vamos ler alguns poemas de Fernando pessoa? Sugiro que você leia os poemas escolhidos e procure neles as características resumidas nas palavras-chave dos esquemas resumitivos acima. Boas leituras!



LIBERDADE

(Falta uma citação de Sêneca)

AI QUE prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

(Fernando Pessoa. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 188-9.)



POSSIBILIDADES DE INTERPRETAÇÃO

Minhas interpretações são as seguintes: Os que tinham liberdade para estudar eram os que tinham tempo livre, o ócio. Sêneca viveu num tempo em que só os cidadãos, que eram poucos, tinham tempo livre para os estudos; afinal, só eles eram livres, ao passo que os escravizados tinham de fazer o trabalho braçal. Infelizmente, o lugar de ócio (a escola) ainda é um privilégio. Minha avó paterna, por exemplo, não pôde ir à escola: tinha de trabalhar na roça. Ela falava com muito carinho do pai e da infância dela, embora não tivesse aprendido a ler. A alfabetização não era necessária ao trabalho realizado por uma pessoa nascida em 1918. Acho que muitos pais de alunos meus tiveram uma realidade idêntica à dela. Não vejo emprenho por parte de muitos alunos, nem interesse, nem gosto, nem senso de obrigação. É preciso que o aluno tenha consciência como juiz. Ele precisa criar autodisciplina e se autoavaliar. Até onde sei (ou até onde penso saber), a consciência como juiz é um dos ensinamentos de Sêneca, filósofo estoico. (O estoicismo, em uma de suas fases, valoriza o sacerdÓCIO e, portanto, o dever; por isso é o oposto do epicurismo, que busca o prazer.) Outra interpretação é a seguinte: o estudo e a literatura não são condenados nem inferiorizados pelo eu poético de Fernando Pessoa: eles seriam apenas símbolos que representariam o pedantismo, a desonestidade intelectual e a hipocrisia dos falsos cumpridores dos deveres, características de pessoas autoritárias como Salazar, o ministro que supostamente entende o que um dos versos menciona: as finanças. Hoje estamos vendo a ascensão do intelectual orgânico (o formador de opinião) que, só por ter diploma, é seguido e respeitado pelos leigos. (Hoje existe youtuber que faz isso sem diploma.) Esse é o caso de Mírian Leitão e Alexandre Garcia. Quanto aos versos em que é mencionado D. Sebastião, gosto de fazer um paralelo com Dilma: até hoje espero o retorno dela. Também poderíamos fazer uma interpretação superficial: o eu poético estaria seguindo a lógica do carpe diem; portanto, revelaria um certo hedonismo, como se fosse escravizado pelo próprio id.



PASSA UMA BORBOLETA por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.

(Alberto Caeiro. O guardador de rebanhos. In: Fernando Pessoa. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 224.)

MAR PORTUGUÊS

Ó MAR SALGADO, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosse nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

(Fernando Pessoa. Mensagem. In: ___. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 82.)

ONTEM À TARDE um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.

E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.

(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu — não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas)
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.

(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa — existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.

E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?

(Alberto Caeiro. O guardador de rebanhos: XXXII. In: Fernando Pessoa. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, pp. 220-1.)

ONTEM O PREGADOR de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.

Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles,
E não se cura de fora,
Porque sofrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!

Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam injustiça do mundo.
Mil passos que desse só para isso
Eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.

Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais
Para qual fui injusto —  eu, que as vou comer a ambas?

(Alberto Caeiro. O guardador de rebanhos: XXXII. In: Fernando Pessoa. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, p. 233.)

E HÁ POETAS que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...

Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!...
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem sei eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao solo pelas estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.

(Alberto Caeiro. O guardador de rebanhos: XXXVI. In: Fernando Pessoa. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, pp. 222.)

Referências bibliográficas:

ALVES, Ida; SANTANA, Rafael.  Aula 15: Almas indisciplinadas.  In: ______; BRAZ, Paulo; ANCHIETA, Marleide; CATTAPAN, Julio; CRUZ, Eduardo da; ERTHAL, Aline Duque; HELENA, Beatriz; MACHADO, Rodrigo; MENEZES, Raquel; VASCONCELOS, Viviane.  Literatura Portuguesa II.  Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2014.

______; BRAZ, Paulo.  Aula 18: Em torno de mim o mundo.  In:______.  Literatura Portuguesa II.  Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2014.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.

GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da Filosofia. Trad. Leonardo Pinto Silva. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

INFANTE, Ulisses. Curso de Literatura de Língua Portuguesa. 1. ed. São Paulo: Scipione, 2001.

OLIVEIRA, Ana Tereza Pinto de; REIS, Benedicta Aparecida Costa dos.  Minimanual Compacto de Literatura Portuguesa: teoria e prática. 1. ed. São Paulo: Rideel, 2003.

PESSOA, Fernando. Obra Poética. 4ª reimpressão da 9ª edição. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

______. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986.

WILTSHIRE, Maria Lúcia.  Aula 12: Mensagem da Terra ao Mar; Aula 13: Mensagem: Do mar ao Encoberto.  In:______; ERTHAL, Aline Duque; FERREIRA, Alba Valério Cordeiro; FILHO, Aderaldo de Sousa; SANTOS, Jane Rodrigues dos. Literatura Portuguesa I.  Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2013.