Objetivo:
Fazer um panorama da obra de Fernando Pessoa com base nas características
gerais de sua produção literária e no contexto histórico.
Agradecimentos à professora Rosemary
Gonçalo.
1. Tripé pessoano:
conhecimento (busca pelo);
despersonalização na forma de
heteronímia e fingimento (justificados pela busca do conhecimento e da
plenitude cósmica, inalcançáveis quando o indivíduo se prende a um único ponto
de vista);
sensacionismo.
2. Principais heterônimos:
Alberto Caeiro (1889-1915);
Ricardo Reis (1887-?);
Álvaro de Campos (1890-?);
Bernardo Soares (?-?).
3. Escola literária (estilo de época):
Modernismo. (Fernando Pessoa fez parte da geração da
revista Orpheu, de 1915.)
Em
Portugal, o Modernismo trilhou, num momento inicial, as pegadas das chamadas
estéticas finisseculares (especialmente do Simbolismo e do Decadentismo [...]),
apropriando-se de suas propostas iconoclastas. De certo modo, pode-se dizer que
as estéticas de fim de século representaram um primeiro passo para o surgimento
das próprias Vanguardas Europeias, em si mesmas tão definidoras do movimento
modernista (ALVES; SANTANA, 2014, p. 2).
4. Contexto histórico global:
segunda ou terceira (?) revolução
industrial;
Primeira Guerra Mundial;
Revolução Russa, de 1917;
totalitarismos: nazismo, fascismo,
salazarismo e franquismo.
5. Contexto histórico português:
Ultimatum
Ultramarino;
intensificação da colonização dos
territórios africanos;
início do movimento republicano (1908);
conflito entre monarquistas e
republicanos;
implantação da República (1910);
ascensão e chegada ao poder de Antônio
Salazar.
6. Fernando Pessoa e o
conhecimento
É indispensável a
leitura do estudo de abertura da Obra
poética, publicada pela Nova Aguilar. Nesse estudo, menciona-se a questão
do conhecimento, que permeia e condiciona toda a poesia pessoana. E uma das
coisas que mais chamam a atenção é a importância de Kant e sua revolução
epistemológica “heliocêntrica”, importância que se resume, se não me falha a
memória, aos sentidos e ao homem. Kant era capaz de enxergar dialeticamente os
acertos e os erros dos racionalistas e dos empiristas.
7.
A obra
7.1
Fernando Pessoa ele mesmo (Fernando Pessoa ortônimo) (1888-1935)
Obra
literária:
Mensagem;
Poesias;
Quadras
ao gosto popular;
Cancioneiro.
Obra
não-literária:
Obras
em prosa.
Palavras-chave:
No caso de Mensagem: pátria; sebastianismo; lirismo épico;
heráldica. No caso de Poesias, Quadras ao gosto popular e Cancioneiro:
melancolia.
7.2
Alberto Caeiro (1889-1915)
(“Pensar é estar doente dos olhos.”)
(“Pensar em Deus é desobedecer a Deus,/ Porque Deus quis que o não
conhecêssemos,/ Por isso se nos não mostrou...” (O Guardador de Rebanhos, VI.))
Obra
literária:
O
Guardador de Rebanhos;
O
Pastor amoroso;
Poemas
inconjuntos.
Palavras-chave:
campo; bucolismo; vida ingênua e
simples; mundo real-sensível; valorização dos sentidos (principalmente a
visão).
Informações:
Teve apenas instrução
primária.
Fernando Pessoa
escrevia em seu nome “por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer
calcular o que iria escrever”.
É curioso que Caeiro
valorize tanto o sentido da visão, pouco prezado pela cultura judaico-cristã,
já que ela dá mais valor à audição e ao ato de ouvir a voz de Deus. Talvez a
explicação para isso seja o fato de o verbo to
see (ver) significar entender em certas frases, assim como o
verbo enxergar. Digo isso porque não
considero só o fato de a busca pelo conhecimento permear a poesia pessoana, mas
também que Fernando Pessoa recebeu uma educação formal em inglês, fora de
Portugal. Por isso não é difícil entender
que o poeta tenha criado Alberto Caeiro e dado a ele essa visão de mundo.
7.3
Ricardo Reis (1887-?) (“Só os deuses socorrem/ Com seu
exemplo aqueles/ Que nada mais pretendem/ Que ir no rio das coisas.”)
Obra
literária:
Palavras-chave:
paganismo; tranquilidade horaciana; epicurismo;
carpe diem.
Informações:
Foi discípulo de
Alberto Caeiro. Formou-se em
Medicina. Exilou-se no Brasil por, como
monarquista, não aceitar a República.
Fernando Pessoa
escrevia em seu nome “depois de uma deliberação abstrata, que subitamente se
concretiza[va] numa ode”.
7.4
Álvaro de Campos (1890-?)
(“Tenho febre e escrevo.”)
Obra
literária:
Palavras-chave:
futurismo; velocidade; máquina; sensacionismo; agressividade; modernidade;
pessimismo; descrença; angústia; lucidez.
Informações:
Também foi discípulo de
Alberto Caeiro. Era engenheiro naval
formado na Escócia.
Fernando Pessoa escrevia
em seu nome quando sentia “um súbito impulso para escrever” e não sabia o quê.
7.5
Bernardo Soares
Obra:
O livro do desassossego.
Palavras-chave:
Informações:
Exercícios:
Vamos ler alguns poemas
de Fernando pessoa? Sugiro que você leia os poemas escolhidos e procure neles
as características resumidas nas palavras-chave dos esquemas resumitivos acima.
Boas leituras!
LIBERDADE
(Falta
uma citação de Sêneca)
AI
QUE prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está
indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as
danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que
peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
(Fernando Pessoa. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 188-9.)
POSSIBILIDADES
DE INTERPRETAÇÃO
Minhas interpretações
são as seguintes: Os que tinham liberdade para estudar eram os que tinham tempo
livre, o ócio. Sêneca viveu num tempo em que só os cidadãos, que eram poucos,
tinham tempo livre para os estudos; afinal, só eles eram livres, ao passo que
os escravizados tinham de fazer o trabalho braçal. Infelizmente, o lugar de
ócio (a escola) ainda é um privilégio. Minha avó paterna, por exemplo, não pôde
ir à escola: tinha de trabalhar na roça. Ela falava com muito carinho do pai e
da infância dela, embora não tivesse aprendido a ler. A alfabetização não era
necessária ao trabalho realizado por uma pessoa nascida em 1918. Acho que
muitos pais de alunos meus tiveram uma realidade idêntica à dela. Não vejo
emprenho por parte de muitos alunos, nem interesse, nem gosto, nem senso de
obrigação. É preciso que o aluno tenha consciência como juiz. Ele precisa criar
autodisciplina e se autoavaliar. Até onde sei (ou até onde penso saber), a
consciência como juiz é um dos ensinamentos de Sêneca, filósofo estoico. (O
estoicismo, em uma de suas fases, valoriza o sacerdÓCIO e, portanto, o dever;
por isso é o oposto do epicurismo, que busca o prazer.) Outra interpretação é a
seguinte: o estudo e a literatura não são condenados nem inferiorizados pelo eu
poético de Fernando Pessoa: eles seriam apenas símbolos que representariam o
pedantismo, a desonestidade intelectual e a hipocrisia dos falsos cumpridores
dos deveres, características de pessoas autoritárias como Salazar, o ministro
que supostamente entende o que um dos versos menciona: as finanças. Hoje
estamos vendo a ascensão do intelectual orgânico (o formador de opinião) que,
só por ter diploma, é seguido e respeitado pelos leigos. (Hoje existe youtuber
que faz isso sem diploma.) Esse é o caso de Mírian Leitão e Alexandre Garcia.
Quanto aos versos em que é mencionado D. Sebastião, gosto de fazer um paralelo com
Dilma: até hoje espero o retorno dela. Também poderíamos fazer uma
interpretação superficial: o eu poético estaria seguindo a lógica do carpe
diem; portanto, revelaria um certo hedonismo, como se fosse escravizado pelo
próprio id.
PASSA UMA BORBOLETA por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu
reparo
Que as borboletas não têm cor nem
movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem
cor.
A cor é que tem cor nas asas da
borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é
que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume
da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
(Alberto Caeiro. O guardador de
rebanhos. In: Fernando Pessoa. Obra
Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 224.)
MAR PORTUGUÊS
Ó MAR SALGADO, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosse nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
(Fernando Pessoa. Mensagem. In: ___. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1986, p. 82.)
ONTEM À TARDE um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver
justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm
fome,
E dos ricos, que só têm costas para
isso.
E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos
olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu
sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.
(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu — não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos
importarmos uns com os outros,
A nossa alma e o céu e a terra
bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser
infeliz.)
Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas)
Era em como o murmúrio longínquo dos
chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela
pequenina
A que fossem à missa as flores e os
regatos
E as almas simples como a minha.
(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa — existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.
E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e
ama?
(Alberto Caeiro. O guardador de
rebanhos: XXXII. In: Fernando Pessoa. Obra
Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, pp. 220-1.)
ONTEM O PREGADOR de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que
trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é
afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem
dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é
fome de comer,
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo
zangar-se.
Que feliz deve ser quem pode pensar na
infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a
infelicidade dos outros é deles,
E não se cura de fora,
Porque sofrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!
Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam injustiça do mundo.
Mil passos que desse só para isso
Eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra
não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro
ou carvalho.
Cortei a laranja em duas, e as duas
partes não podiam ficar iguais
Para qual fui injusto — eu, que as vou comer a ambas?
(Alberto Caeiro. O guardador de
rebanhos: XXXII. In: Fernando Pessoa. Obra
Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, p. 233.)
E HÁ POETAS que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!...
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem
constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não
está!...
Quando a única casa artística é a Terra
toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a
mesma.
Penso nisto, não como quem pensa, mas
como quem respira,
E olho para as flores e sorrio...
Não sei se elas me compreendem
Nem sei eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em
mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao solo pelas estações contentes
E deixar que o vento cante para
adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.
(Alberto Caeiro. O guardador de
rebanhos: XXXVI. In: Fernando Pessoa. Obra
Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986, pp. 222.)
Referências
bibliográficas:
ALVES, Ida; SANTANA, Rafael. Aula 15: Almas indisciplinadas. In: ______; BRAZ, Paulo; ANCHIETA, Marleide;
CATTAPAN, Julio; CRUZ, Eduardo da; ERTHAL, Aline Duque; HELENA, Beatriz; MACHADO,
Rodrigo; MENEZES, Raquel; VASCONCELOS, Viviane.
Literatura Portuguesa II. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2014.
______; BRAZ, Paulo. Aula 18: Em torno de mim o mundo. In:______. Literatura Portuguesa II. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2014.
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS,
Maria Helena Pires. Filosofando:
introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.
GAARDER, Jostein. O mundo de Sofia: romance da história da Filosofia. Trad. Leonardo
Pinto Silva. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
INFANTE, Ulisses. Curso de Literatura de Língua Portuguesa. 1. ed. São Paulo:
Scipione, 2001.
OLIVEIRA, Ana Tereza Pinto de; REIS,
Benedicta Aparecida Costa dos. Minimanual Compacto de Literatura Portuguesa:
teoria e prática. 1. ed. São Paulo: Rideel, 2003.
PESSOA, Fernando. Obra Poética. 4ª reimpressão da 9ª edição. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1986.
______. Obra Poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986.
WILTSHIRE, Maria Lúcia. Aula 12: Mensagem da Terra ao Mar; Aula 13:
Mensagem: Do mar ao Encoberto.
In:______; ERTHAL, Aline Duque; FERREIRA, Alba Valério Cordeiro; FILHO,
Aderaldo de Sousa; SANTOS, Jane Rodrigues dos. Literatura Portuguesa I. Rio
de Janeiro: Fundação Cecierj, 2013.