Márcio
Alessandro de Oliveira[1]
Objetivo geral:
Expor, em linhas gerais, os fatores históricos, econômicos, sociais e
biográficos que condicionaram a obra de Machado de Assis, com ênfase no romance
Dom Casmurro. (Crítica ao objetivo:
Na aula de Literatura, deveria o texto literário ser o centro de gravidade das
atenções, mas ele deve o que é ao tempo em que viveu o autor.)
Objetivos específicos:
1º:
resumir a vida de Machado de Assis, cujas experiências lhe condicionaram a
prosa;
2º:
enumerar suas obras com datas de publicação, dividi-las em fases e apontar suas
características;
3º:
registrar o contexto histórico de Machado, que condiciona a literatura (não é
só o contexto histórico que condiciona a literatura: para Tzvetan Todorov, a
vida do autor também faz isso);
4º:
apontar os elementos do conteúdo e da forma do romance sem deixar de considerar
o momento histórico de sua produção e de sua publicação.
Avaliação formativa:
debate sobre o romance Dom Casmurro.
Pré-requisito:
leitura prévia do supracitado romance.
PARTE
I: JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS (1839-1908)
1. Dados biográficos:
Nascido
e criado no Rio de Janeiro em 21/6/1839 (nasceu no Morro do Livramento).
Origem
humilde: pai pintor (de ascendência africana) e mãe lavadeira (de ascendência
portuguesa).
Perdeu
o pai, a mãe e a irmã e foi criado pela madrinha.
Não
teve ensino regular: aprendeu a ler em casa e exerceu a autodidaxia em
bibliotecas.
Foi
tipógrafo, revisor, contista, cronista, crítico literário e teatral e
romancista.
Começou
a escrever por volta de 1855, ano da publicação de seu primeiro poema,
intitulado Ela.
Ganhou
a vida no serviço público.
Era
epiléptico, gago e estigmatizado por ser mestiço e mulato (o que dificultou seu
casamento) e enfrentou críticas severas do sergipano Sílvio Romero, que
antipatizava com Machado. Este teria feito críticas duras a um poema de Sílvio
Romero, críticas às quais o sergipano não perdoava.
Seguindo
o exemplo da França, fundou a Academia Brasileira de Letras na persuasão de que
os escritores poderiam se livrar da imagem de boêmios e desequilibrados deixada
pelo Romantismo; assim, poderiam ser vistos como intelectuais sérios e
preocupados com a sociedade.
Era
ateu e recusou a extrema unção.
2. Obras conhecidas:
2.1. Romances:
2.1.1. Fase romântica
(fase de aprendizagem):
Ressurreição
(1872);
A mão e a luva
(1874);
Helena
(1876);
Iaiá Garcia
(1878).
2.1.2. Características:
narrativa
linear;
narrador
observador onisciente;
personagens
de perfil psicológico menos complexo.
2.1.3. Fase realista
(fase de maturidade):
Memórias Póstumas de
Brás Cubas (1880-1881);
Quincas Borba
(1886-1891);
Dom Casmurro
(1899-1900);
Esaú e Jacó
(1904);
Memorial de Aires
(1908).
2.1.4. Características:
narrativa
não linear e com digressões;
uso
do narrador-personagem;
personagens
com vícios (e algumas virtudes);
participação
do leitor.
2.2. Contos:
Contos fluminenses
(1870);
Histórias da meia-noite
(1873);
Papéis avulsos
(1882);
Histórias sem data
(1884);
Várias histórias
(1896);
Páginas recolhidas
(1899);
Relíquias de casa velha
(1906).
2.3. Poesias:
Crisálidas
(1864);
Falenas
(1870);
Americanas
(1875);
Poesias
completas;
Ocidentais
(1901).
3. Escola literária
(estilo de época):
Machado de Assis, um autor
canonizado, é enquadrado, com ressalvas, na escola do Realismo, que começa no
Brasil em 1881 com a publicação de Memórias
Póstumas de Brás Cubas, ao passo que o Naturalismo já havia começado em
1880, com a publicação do romance O
Mulato, de Aluísio Azevedo.
3.1. Realismo:
O Realismo (com inicial maiúscula)
é a escola literária da segunda metade do século XIX. Rejeitando a arte pela
arte, opôs-se ao movimento romântico. Apegava-se à objetividade, e achava que a
literatura deveria ter uma preocupação social. Nos romances realistas, as
personagens não são idealizadas, pois têm defeitos e qualidades. Os autores
realistas pautavam-se pela verossimilhança, ao passo que os naturalistas viam o
ser humano como um produto biológico, motivo por que lhe atribuíam um caráter
animalesco (zoomorfismo). Pode-se dizer que todo naturalista era realista, mas
nem todo realista era naturalista. Também não se pode dizer que um autor dorme
romântico e acorda realista: as datas apenas são marcos que norteiam as
classificações. No caso do autor de Dom
Casmurro, é mais fácil dizer o que ele não é do que dizer o que é. Não se
sabe se o próprio Machado se considerava realista, mas é certo que censurava o
naturalismo.
3.1.1. Surgimento:
Europa → Obra inaugural: Madame Bovary (1857), de Gustave
Flaubert (1840-1902), francês.
Brasil → Obra inaugural: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis
(1839-1908).
4. Contexto histórico da Europa e de outras
partes do mundo:
Revolução
Científica;
Segunda
Revolução Industrial (êxodo rural; exploração indiscriminada do proletariado);
Belle Époque
(Bela Época) (burguesia como classe dominante);
puritanismo
vitoriano (no caso da Inglaterra);
liberalismo
econômico (ideias liberais econômicas prevalecem sobre as outras ideias da
Revolução Francesa);
preocupação
com a infância (fruto da ascensão da burguesia);
neoimperialismo
praticado pelos Estados nacionais;
Revolução
Meiji, no Japão (1868-1900);
surgimento
de quatro ciências modernas: Antropologia, História, Psicologia e Sociologia.
5. Contexto histórico do Brasil:
Segundo
Império (D. Pedro II) (1840-1889);
Belle Époque
(Bela Época);
ausência
quase total de industrialização (que só seria realmente implementada depois da
crise do café, causada pela crise de 1929, o que talvez sugira que o Brasil, no
tempo de Machado de Assis, ainda era um país predominantemente rural);
classe
média urbana;
luta
pela abolição da escravatura;
movimento
republicano, marcado pela Revolução Farroupilha (1835-1845);
inauguração
da primeira ferrovia do Brasil em 1854 (com trinta anos de atraso em relação às
ferrovias do Reino Unido), que ligava o porto da localidade hoje conhecida como
Mauá (bairro de Guia de Pacobaíba, 5º Distrito do município de Magé, RJ) à
localidade que hoje corresponde ao 6º Distrito de Magé e também a Petrópolis,
que faz limite com Imbariê, 3º Distrito de Duque de Caxias, e Inhomirim, 6º
Distrito de Magé, distritos limítrofes entre si que correspondem à antiga Vila Estrela;
Guerra
do Paraguai (1864-1870), que é um dos conflitos englobados pela questão do
Prata, e de que participou Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), que, por
cumprir o dever com afinco, era caxias, o que lhe rendeu a alcunha de Duque de
Caxias, nome do município em que fica seu local de nascimento: uma antiga
fazenda (a fazenda São Paulo) transformada em museu no bairro Taquara, bairro
de Imbariê, 3º Distrito de Duque de Caxias;
Lei
Áurea (1888);
Proclamação
da República (1889).
6. Ideias científicas, filosóficas e religiosas:
6.1 Europa:
Cientificismo
(valorização da ciência);
Marxismo
(socialismo científico e história da humanidade como a história da luta de
classes), de Karl Marx (1818-1893) e Friedrich Engels (1820-1895), alemães;
Determinismo,
de Hipollite Taine (1828-1893), francês;
Positivismo,
de Auguste Comte (1798-1857), francês;
Evolucionismo,
de Charles Darwin (1809-1882), inglês;
Kardecismo,
de Alan Kardec (1804-1869), francês.
Observações:
Não se incluiu a teoria de Sigmund
Freud (1856-1939), que nasceu quando Machado já era escritor. Em termos de
influência ou intertextualidade, a importância do pai da Psicanálise para os
estudos machadianos é muito remota ou praticamente nula. O primeiro livro de
Freud deve ter sido publicado em 1900, no último ano do século XIX, portanto.
Machado morreu em 1908. Além disso, as principais obras do autor brasileiro já
tinham sido publicadas antes que fossem divulgadas as ideias de Freud.
Outro pensador excluído foi Friedric
Nietzsche (1844-1900), filósofo ateu. Embora seja possível estabelecer
semelhanças entre algumas ideias de Machado de Assis e algumas do autor nascido
na Prússia, seriam necessárias pesquisas que confirmassem ou negassem que o brasileiro
leu Nietzsche.
De qualquer forma, Machado deve ter
conhecido ideias materialistas, que não são exclusivamente marxistas, posto que
ao materialismo dialético, de Marx, é anterior o materialismo mecanicista. É
que, graças a Imanuel Kant (1724-1804), haviam surgido “duas linhas divergentes
entre os filósofos posteriores. De um lado, os materialistas (Feuerbach) e os
positivistas (Comte) [...]. De outro, os idealistas (Fichte, Schelling e Hegel)
[...]” (ARANHA e MARTINS, 1986, p. 179).
Por mais que o marxismo se opusesse à
visão positivista de mundo, o fato é que as concepções científicas acima
listadas, além de racistas, eram tão materialistas quanto o marxismo, o que de
certo modo as aproxima do pensamento de Marx, ao qual se opunha Rui Barbosa, que
viveu no tempo de Machado de Assis. Se a preocupação social de Machado de Assis
e sua determinação de mostrar que os escritores deveriam cumprir um papel
relevante na sociedade foram influenciadas por ideias marxistas, coisa é que
exige investigação.
O materialismo mecanicista, até onde
sei, dizia que o pensamento era uma secreção do cérebro, um subproduto
biológico, portanto. Isso pressupunha que o ser humano não tinha nem sequer um
princípio de livre-arbítrio: ele era programado, por assim dizer, por forças
biológicas, de modo que a ele só restava cumprir seu destino sem alterar a
realidade que o molda ou o determina. Marx, no entanto, usa a dialética de
Hegel para formular o materialismo dialético, o qual, usado nos estudos de
História, constituía o materialismo histórico.
Ao contrário do materialismo
mecanicista, o materialismo de que fala Marx admitia que o ser humano pode
transformar a realidade. Marx faz apenas uma ressalva: diz que as ideias (como
leis, projetos de leis, artes, educação e ciências) é que são determinadas
pelas condições materiais de existência (alimentação, produção de alimentos,
distribuição de água, luz e gás, moradias, saneamento, etc.), e não o
contrário. Nessa perspectiva, a ideia não move a sociedade nem a História
primeiro: as condições materiais de vida é que fazem isso primeiro. Um exemplo
é a entrada das mulheres no mundo do trabalho: essa entrada é fruto das lutas
feministas, mas não foi a ideia que alterou a realidade primeiro: foi uma
condição histórica que permitiu a implementação de uma ideia: a Segunda Guerra
Mundial. Assim, uma ideia, que faz parte da superestrutura, formada pelas leis,
pela religião, pela moral, pelas artes e pelas ciências, pode exercer efeito
sobre a infraestrutura, formada pelas condições materiais de existência, que
são as condições de produção de mercadorias e serviços e as condições de
habitação. Por isso acredito no poder transformador da literatura: ela pode
retroagir sobre a realidade de que se serve e que a molda (um temor de
autoridades que perseguiram autores ao longo da história, como Tomás Antônio
Gonzaga e Jorge Amado). Contudo, está claro que as ideias não
explicam a realidade: é a realidade que explica as ideias.
Mais um exemplo: Marx dizia que toda
religião é determinada pelas condições materiais e sociais de seus adeptos.
Dessa forma, não é o bramanismo que determina as castas da sociedade indiana: é
a própria divisão da sociedade indiana em castas que determina a criação de uma
religião que seja um reflexo dessa divisão e que legitime essa mesma divisão. E
a religião determina a manutenção do que a originou: as condições materiais de
existência indianas, o que prova que as ideias podem influenciar sua origem, ou
seja: podem influenciar as condições materiais de vida. Como muitas pessoas
confundem Deus com sua própria religião e abominam as outras religiões, Marx,
creio eu, valia-se de seu postulado para combatê-las devido ao fato de elas
confirmarem o poder e a injustiça ao invés de combatê-los por causa da promessa
de uma vida melhor após a morte; daí a sua famosa frase: “A religião é o ópio
do povo”.
Outro exemplo é o kardecismo. Se Marx
tivesse de comentar os livros de Kerdec, que, além de possivelmente ter sido
médium de si mesmo, conforme a teoria do inconsciente, de Freud, também viveu
no século XIX e nele as divulgou, diria que não é o plano espiritual que
determina a vida terrena: ao contrário, é a vida terrena que determina a
doutrina kardecista, baseada em muitos elementos que só existiam no tempo de
Kardec, como a teoria da evolução. O sistema de castas indiano, até onde sei,
não permite o progresso nem a ascensão social pela livre iniciativa na
encarnação em o que o indivíduo está na parte mais baixa da hierarquia social e
econômica. O kardecismo, ao contrário, acredita no progresso, e faz isso
justamente no tempo do Positivismo e da teoria de Darwim, que é também o tempo
em que a burguesia, defensora da livre iniciativa e do empreendedorismo, é a
classe dominante. Como tal, ela vai impor às demais classes uma ideologia
segundo a qual todos podem progredir com a livre inciativa de modo a
racionalizar e mascarar as injustiças sociais que provoca e que atribui à
“incompetência” e à “falta” de esforço dos que não lutam dentro da
meritocracia.
Em resumo, o materialismo dialético se
dá na forma da relação entre infraestrutura e superestrutura: esta é gerada por
aquela, mas a segunda pode influenciar a primeira.
O materialismo histórico também é
dialético porque consiste na criação de teses, antíteses e sínteses (como
propunha o modelo da dialética de Hegel, do século XVIII) em diferentes fases
históricas. Desse modo, o cidadão grego seria a tese, o escravizado, a antítese
e o feudalismo medieval, a síntese histórica do conflito entre senhor e escravizado.
Da mesma forma, o suserano seria a tese a que se opõe uma tese oposta (a
antítese): o vassalo. A síntese do conflito medieval seria o modelo econômico
conhecido como capitalismo, formado por uma classe não escravizada, mas sim
assalariada. Ela vende a força de trabalho à classe dominante: a burguesia, que
substituiu o lugar de classe dominante da nobreza, que desde o Despotismo Esclarecido
(século XVIII) ou talvez antes dele via, com o Iluminismo, a decadência do
Antigo Regime. Por isso Marx dizia que a história da humanidade é a história da
luta de classes (senhor e escravizado, suserano e vassalo, assalariado e
burguês), e por isso ele também formou um conceito de ideologia segundo o qual
ela é uma forma de mascarar a realidade, uma forma de mascarar que se pauta
pela reprodução e manutenção das ideias da classe dominante.
Todos estes comentários a respeito de
Nietzsche e Marx têm uma razão de ser: pode-se dizer que, como Machado, eram
ateus.
6.2. Brasil:
Escola
Filosófica de Recife (1870), de orientação positivista;
Alguns
pensadores: Tobias Barreto (1839-1889), sergipano; Sílvio Romero (1851-1914),
sergipano.
Observações:
O Positivismo era um sistema
filosófico criado por Comte, considerado o pai da Sociologia. Basicamente, ele
consistia em dizer que a humanidade era dividida em três estágios históricos,
do qual o último era o do tempo de Comte, que acreditava que no seu tempo eram
desnecessárias as revoluções: bastava dar ordem ao progresso (daí o mote da
bandeira do Brasil), progresso que, na economia (mais especificamente: no
mercado), levou a sociedade à exploração da classe trabalhadora. O Positivismo
é, portanto, uma forma ideológica de reprodução do pensamento das classes
dominantes, ainda que dissesse que queria que a ciência sociológica fosse
objetiva e neutra como as ciências naturais supostamente eram. O princípio de
neutralidade, cujo pilar central era o de que a Sociologia positivista era
isenta ou livre de ideologia, já era em si um princípio ideológico e, portanto,
não-neutro. Chegou a virar religião no Brasil, em que ainda hoje se veem fortes
traços do Positivismo, que produz uma visão segundo a qual a história da
humanidade é feita por “grandes” nomes, como o de Duque de Caxias, e por
“grandes” feitos dos “heróis”, e não pela luta de classes. (Isso não é muito
diferente do que acontece nos Estudos Literários, em que o cânone ainda é pautado
pela diferença entre os “grandes” autores e os que “não” são “grandes”.)
O Determinismo, a seu turno, acreditava
em três fatores determinantes: o meio, o momento histórico e a raça (etnia).
Sílvio Romero, inimigo declarado de Machado de Assis, baseou-se nisso no seu
trabalho de historiografia e crítica literárias. Pode-se dizer que ambas as
doutrinas “científicas” são baseadas no cientificismo. Machado de Assis
satiriza Augusto Comte com o personagem Quincas Borba, formulador do
Humanitismo.
Quincas Borba não aparece em Dom
Casmurro, mas é um dos mais marcantes personagens de Machado de Assis. Aparece
em Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, outros dois romances
machadianos. É ele uma crítica alegórica a Augusto Comte; o Humanitismo, uma
sátira bem ácida ao Positivismo (que até hoje está na bandeira do Brasil).
De acordo com o Humanitismo, cada um de
nós seria parte de Humanitas. Alguns estariam na parte mais alta, outros, na
mais baixa; e, quando alguém morre, então Humanitas perdeu uma parte de si como
quem de si tira unhas dos pés. No dizer de Quincas Borba, rigorosamente não há
morte, pois o desaparecimento do indivíduo não é o fim da espécie de que fazia
parte. Dentro dessa lógica, que é absurda, duas tribos poderiam encontrar uma
plantação de batatas. Ao invés de dividir, cada uma delas brigaria, pois a
divisão das batatas não daria saciedade a ambas as tribos por serem
insuficientes as plantações e as duas morreriam de desnutrição. Para preservar
a espécie de uma das tribos, seria necessária uma guerra, que sempre se torna
tema de hinos e desfiles militares de vitória. Daí uma famosa frase machadiana,
que diz: “Ao vencedor as batatas”. Trata-se da sobrevivência do mais forte, um
dos pilares do fascismo, que surgiu depois do tempo de Machado de Assis.
PARTE
II: MACHADO DE ASSIS (1839-1908) E DOM
CASMURRO (1899)
1. Período de produção do romance e ano de
publicação:
1898-1899.
2. Elementos do romance:
2.1. Elementos do
conteúdo: enredo, tempo, espaço e personagens:
2.1.1. Resumo:
A narrativa apresenta o seguinte
conflito: Bentinho (Bento Santiago) não quer ser padre por falta de vocação e
por amor a Capitu, amor que José Dias, agregado da família de Bentinho, havia
notado, e que a mãe do rapaz não nota por considerá-lo uma criança; mas ela
está disposta a cumprir a promessa: fazer do filho um seminarista e um padre.
A história, no entanto, começa a
ser narrada por um Bentinho já velho, apelidado de Casmurro pelos conhecidos (casmurro significa teimoso).
O protagonista chega a ir para o
Seminário; assim, conhece Escobar, seu melhor amigo. Contudo, Bentinho sai do
Seminário graças à intervenção de José Dias e se torna bacharel em Direito. Casado
com Capitu, mantém a amizade com Escobar e a esposa deste.
Passado algum tempo, Escobar faz uma
visita a Capitu na ausência de Bentinho, que mais tarde lamenta a morte de
Escobar na praia. Durante o velório, Capitu contempla o defunto, o que explica
o fato de o narrador-personagem dizer que ela tem olhos de ressaca, em
contraste com o dizer de José Dias, para quem ela tinha olhos de cigana oblíqua
e dissimulada. Com o passar de alguns anos, Bentinho nota que seu filho é muito
parecido com Escobar...
O clímax do romance é produzido quando
Bentinho cogita de envenenar a criança, a quem ele diz não ser pai dela. Capitu
escuta e interpela Bentinho, que fora entreouvido. Diz ele: “Há coisas que não
se dizem”, ao que Capitu responde: “Há coisas que não se dizem só pela
metade”. Bentinho, então, confessa as
suas suspeitas. Capitu vai embora com o filho e nunca mais vê o marido.
Teimando na suposta traição de Capitu,
Bentinho se pergunta se ela se desvirtuara ou se sempre fora quem era, como a
polpa da fruta dentro da casca.
Comentários:
Pode-se dizer que, pelo menos na
cabeça do protagonista, um anti-herói, existe um triângulo amoroso formado por
Capitu (que era mais mulher do que Bentinho era homem), Bentinho e Escobar.
Prevalece o ponto de vista de Bentinho,
já que é ele quem narra a história; contudo, sua imaginação é febril: basta
lembrar o episódio em que ele imagina uma visita do Imperador, que iria
convencer a mãe de que ele, Bentinho, não deveria ser padre. Repita-se que era
um casmurro (teimoso), o que dá margem à ambiguidade. Além disso, a traição de
Capitu não pode ser confirmada por não haver o ponto de vista dela.
Três fatores levam Bentinho a se ver num
triângulo amoroso: 1. uma visita de Escobar na ausência de Bentinho, conforme
relato de Capitu; 2. o modo como Capitu olha para o cadáver de Escobar no
velório (ele, curiosamente, havia morrido no mar, o que remete o leitor aos
“olhos de ressaca” de Capitu); 3. a semelhança física entre o filho de Capitu e
Escobar, amigo que Bentinho conheceu no seminário (tal semelhança pode ser
fruto da imaginação de Bentinho Santiago, que fora capaz de imaginar que o
próprio Imperador do Brasil poderia livrá-lo do compromisso de virar padre).
O romance permite críticas ao casamento
e às conclusões que as pessoas tiram com base em suas convicções e impressões,
e não com base na apuração dos fatos;
Pode ser importante para as
leitoras o fato de o século XIX ter sido o século da Belle Époque e do casamento como consolidação dos valores
burgueses, assimilados pela classe média, uma vez que a fidelidade feminina era
uma forma de garantir a reprodução das linhagens masculinas e a transmissão do
patrimônio privado em forma de herança. Da mesma forma, pode-se dizer que há
uma crítica à sociedade pelo fato de Capitu não ter um status social equivalente ao de Bentinho: ela não é tão rica quanto
ele: é de uma família mais modesta e, portanto, com menos prestígio social. Tratar-se-ia,
então, de uma crítica à ascensão social na forma do casamento feito por
interesse.
Por fim, é importante frisar mais alguns
aspectos do texto:
Bento Santiago chega a se comparar
com Otelo, personagem homônimo de uma peça de Shakespeare que mata Desdêmona,
esposa considerada infiel, embora ela não o fosse. Também admite que não tem
boa memória. Além disso, tem, como já ficou dito, muita imaginação, o que
sugere que ele se deixa levar por ela. A imaginação é requisito de um
profissional da palavra, que depende da retórica, calcada em certa
criatividade, necessária na hora de convencer o interlocutor. Por isso, o
leitor está diante de uma crítica a duas profissões que eram muito do gosto da
elite brasileira do século XIX: o padre e o advogado. Contudo, Machado,
conhecedor de seu tempo, sabia que o público veria Capitu como adúltera, pois,
numa época machista e desprovida do exame de ADN (DNA), seria difícil uma
interpretação diferente. Por outro lado, Machado também não era só conhecedor:
era acima de tudo um crítico de seu tempo, razão por que podemos legitimar a
ambiguidade que deve ter comparecido na sua produção intencional de sentido,
embora fosse comum que antigamente se encontrassem sinopses em que se lia: “O
traído Bentinho recorda sua vida de casado...”. Hoje, uma análise que contemple
a cabeça do século XXI e a do fim do século XIX permite que digamos que qualquer
interpretação é válida, desde que permaneça tão só no terreno das possibilidades,
e não no das afirmações. Em uma análise baseada na mentalidade contemporânea, é
possível ver uma crítica ao machismo, posto que Bentinho é teimoso. Vive
sozinho, longe da esposa, que foi para longe, e do filho, que morre numa
expedição. Bento chega a confessar ao leitor que gastaria dinheiro só para não
tornar a vê-lo.
Hoje, três são as possibilidades de
interpretação: 1. infidelidade de Capitu; 2. machismo e ciúme exagerado de
Bentinho; 3. e ciúme de Bentinho em relação a Escobar, com quem Bentinho ficava
às escondidas no tempo do seminário, talvez por estarem apaixonados um pelo
outro...
2.2. Elementos da
forma: capítulos de prosa com fluxo psicológico, e não (apenas) cronológico:
Os capítulos são curtos e seguem um
fluxo psicológico, e não apenas temporal. Talvez o romance Dom Casmurro não chegue a ser tão complexo quanto Memórias Póstumas de Brás Cubas, em que
o narrador também é o personagem principal, mas podemos notar um quê de fluxo
psicológico que começa pelo agora para mostrar o antes, que podem estar
embaralhados, o que não seria muito diferente de algumas séries televisivas que
vemos hoje, como Era uma vez (Once Upon a Time). Certo é que Machado
de Assis fez que Bentinho comentasse a história (atitude idêntica à de Brás
Cubas, que interage com o leitor dirigindo-se a ele para comentar, e não
propriamente narrar, a história e até para julgar o leitor), uma ação idêntica
à do protagonista do filme Curtindo a
vida adoidado.
3. Características do
romance:
3.1. Características
condicionadas pelos fatos históricos:
Michel Foucault (1999, p. 117-8)
explica a importância do casamento no livro História
da sexualidade (volume I):
a burguesia [...] olhou [...] para o lado de sua descendência e da saúde do seu organismo. O
“sangue” da burguesia foi o seu próprio sexo. E não se trata de um jogo com as
palavras; muitos dos temas particulares aos costumes de casta da nobreza se
encontram de novo na burguesia do século XIX, mas sob as espécies de preceitos
biológicos, médicos ou eugênicos; a preocupação genealógica se tornou
preocupação com o legado; nos casamentos, levaram-se em conta não somente
imperativos econômicos e regras de homogeneidade social, não somente as
promessas de herança como as ameaças de hereditariedade; as famílias portavam e
escondiam uma espécie de brasão invertido e sombrio, cujos quartéis infamantes
eram as doenças ou as taras da parentela — a paralisia geral do avô, a
neurastenia da mãe, a tísica da caçula, as tias histéricas ou erotômanas, os
primos de maus costumes.
3.1.2. Características
possivelmente condicionadas pela vida do autor:
No que concerne à representação da
mulher em Dom Casmurro, é importante
frisar a ambiguidade de Capitu. Entretanto, a desconfiança de Bentinho pode ter
um fundo psicológico e biográfico, pois, a ser verdade o que diz Érico
Verissimo em Breve História da Literatura
Brasileira, Machado, por ter sido “feio”, gago e estigmatizado como mulato,
não era um sucesso entre as mulheres, razão pela qual poderia acrescentar um
quê de misoginia à sua obra. No supracitado livro, Veríssimo (1996, p. 72) chega
a mencionar o episódio seguinte:
Há um pequeno
incidente que nos dá uma ideia de sua susceptibilidade. Certo dia, durante uma
festa, uma senhora tagarela dirigiu-se a ele sorridente: “Ora, senhor Machado,
disseram-me que tinha uma terrível gagueira, Mas o senhor fala bastante bem.
Não é tão má como dizem”. O rosto do escritor era uma máscara de pedra quando
respondeu: “Calúnias, cara madame, apenas calúnias. Disseram-me que a senhora
era meio tola, e agora vejo que não é tão tola como dizem”.
3.2.
Palavras-chave:
Talvez
possamos estabelecer as seguintes palavras-chave para o romance Dom Casmurro:
casamento;
ciúme; imaginação exagerada; suposta
traição.
Referências
ARANHA,
Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.
ASSIS,
Joaquim Maria Machado de. Dom Casmurro.
São Paulo: Gráfica Editora Brasileira LTDA, sem ano.
______.
Memórias Póstumas de Brás Cubas. São
Paulo: Klikc Editora, sem ano de publicação.
______.
Quincas Borba. São Paulo: Nobel,
2009.
______.
Helena. São Paulo: Martin Claret,
2002-8.
BORBA,
Maria Antonieta Jordão de Oliveira. Aula 14: Teoria da interpretação e
Projeção. In: ______; FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros; FRANÇA, Júlio;
MORAES, Anita M. R.. Teoria da Literatura
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[1] Licenciado em Letras (Português
e Literaturas) pela Universidade Federal Fluminense, mestre em Estudos
Literários pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor efetivo de
uma rede pública de ensino.