“Nas falas das professoras sobre as mudanças na
função social da escola pública nesta década persistiram as imagens já
retratadas: insatisfação quanto às condições de trabalho docente (como baixos
salários, aumento da jornada de trabalho, etc.) e relacionadas com a
organização do processo de trabalho na escola (como relações de poder e
controle, fragmentação e formas de resistência das professoras). Atribuíram a
culpa à própria escola e a seus professores, o que equivale a culpar as
vítimas.”
(Vera Corrêa,
2000, p. 119-20.)
Olá, responsável ou
responsáveis pela supracitada página.
Não sei o nome de quem
está aí do outro lado, mas deve ser aberto ao diálogo, que pressupõe sempre o
monólogo. Quero tratar de dois temas: 1. o modo reducionista e superficial como
são encarados o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Darcy Ribeiro; 2.
o modo como acusam publicamente meus colegas de profissão.
Há uma reclamação, cujo
tom é o de quem está revoltado, relativa à não-entrada de alunos. Estes teriam
sido barrados por não usarem uniforme e teriam revistadas as mochilas. Usar o
uniforme, não danificar o prédio, chegar, sempre que possível, à escola dentro
dos horários estabelecidos, tudo isso são conteúdos
atitudinais (esse é o termo técnico-científico da pedagogia). No nível
pragmático (e só poderia ser em tal nível), o aluno pode e deve ser punido
quando não usa uniforme.
Além disso, se o
regimento da escola diz que o aluno deve entrar de uniforme, e foi dado um prazo
razoável para ser adquirida a vestimenta, a coordenação e a direção, cuja
autoridade não pode nem deve ser confundida com autoritarismo, podem, sim,
impedir a entrada do aluno. A propósito: os órgãos colegiados, dos quais deve participar
a comunidade escolar, devem saber disso; portanto, a comunidade deve acatar o
regimento.
Lembrem-se de que,
findo o Antigo Regime, o sujeito deixou de ser um servo para ser um cidadão,
conforme a ideologia liberal (que, embora seja um dos esteios da burguesia,
também é valorizada pelas correntes progressistas e de esquerda). Ora, o
cidadão é um sujeito de direitos, mas também é um sujeito de DEVERES. Uma vez
que crianças e adolescentes são seres inteligentes, isto é: seres dotados de
cognição, linguagem e sentimentos, e não marionetes manipuláveis, sabem que
estão sujeitos a penalidades previstas pelo próprio ECA, pelo regimento e pela
autonomia dos servidores da escola (e vale lembrar que é crime desacatar
servidor público no exercício da função dele). Não adianta choramingar, que
essa é uma atitude infantil. Os alunos são sujeitos de deveres também, e não
apenas sujeitos de direitos. Usar o ECA de modo superficial e reducionista é
atitude típica de alunos que, como no romance profético 1984, de George Orwell, valem-se do poder que têm (aquele
micropoder, de que fala Foucault) para colocar professores, coordenadores e
diretores contra a parede num tempo em que é ameaçado o serviço público. Já fui
vítima desse tipo de interpretação reducionista atribuída ao ECA. Não vejo
diferença entre isso e a atitude dos adolescentes olavistas, que adoram tietar
seu tão amado guru tanto quanto adoram tietar Bolsonaro e encher a boca para
dizer que a Terra é plana. Tais adolescentes, que geralmente não são nem um pouco
estudiosos, ameaçam o professor: acusam-no de doutrinação, fazem queixas em
instâncias superiores, apresentam evidências duvidosas (como fotos tiradas sem
o consentimento do docente, áudios gravados em aula sem autorização e imagens
de câmeras) e fazem pressão para que o professor seja demitido, tarefa muito
fácil em tempos de contratos temporários e pouquíssimos concursos para o
provimento de cargos efetivos dos magistérios públicos.
Com relação ao modo
superficial como essa página aborda a LDB, é possível afirmar que ela (a LDB) é
cheia de contradições, típicas de uma sociedade dividida em classes, na qual as
escolas particulares de renome mandam e desmandam nas leis relativas à educação
escolar e no próprio CNE. Supondo (ou pressupondo) que os cabeças dessa página
simpatizem com Darcy Ribeiro (que não era gabaritado para legislar sobre
educação), devo me limitar a fazer as seguintes revelações: É desesperador
notar que a Lei 13.395 contempla a comunidade (e, por tabela, as sagradas
famílias) em seu parágrafo primeiro. Isso está de acordo com as políticas do
Banco Mundial. Infelizmente, a atual LDB equivale àquela que foi idealizada por
Darcy Ribeiro, e não ao texto que propusera o deputado Otávio Elísio (PMDB/MG).
Refiro-me ao projeto de lei 1.258, de 1988, para o qual o relator escolhido foi
o deputado Jorge Hage (PDT/BA), que “ouviu as entidades da sociedade civil e
outros parlamentares e apresentou, em agosto de 1989, o primeiro substitutivo
do Projeto Otávio Elísio, que contou com o apoio do Fórum Nacional em Defesa da
Escola Pública” (MARTINS, 2008, p. 93). Infelizmente,
a vitória de
Collor priorizou as propostas educacionais do empresariado industrial. No
início de 1990, Jorge Hage apresentou o segundo substitutivo, mas os defensores
dos interesses privados criaram uma série de mecanismos para que esse
substitutivo não caminhasse na Câmara dos Deputados. Collor reuniu aliados para
barrar o projeto do deputado Jorge Hage; assim, foram criados vários empecilhos
que impediram a votação do projeto na Câmara dos Deputados. Em 1992, Darcy
Ribeiro apresentou outro projeto de LDBEN, que também foi assinado por Maurício
Correa (PDT/RJ) e Marco Maciel (PFL/PE). Logo em seguida, o projeto do deputado
Jorge Hage foi retirado do Congresso, o projeto de Darcy Ribeiro foi votado e
transformou-se na nova LDBEN, Lei 9.394, promulgada em 20 de dezembro de 1996
(MARTINS, 2008, p. 93).
Até hoje a LDB é
conhecida como Lei Darcy Ribeiro. Reflete as contradições da educação pública
brasileira e define a educação como dever do Estado e da família. Esta, é
claro, é religiosa e tacanha, e por isso mesmo não respeita a liberdade de
cátedra do professor. Para o azar dos professores progressistas, “as esperanças
[...] de ter uma educação
fundamentada, discutida e organizada sob os princípios da dimensão
crítico-social foi abortada pela Lei Darcy, que não representa a vontade e o
sonho dos educadores brasileiros” (THOMAZ; CARINO, 2008, p. 149). A integração
que resulta no tripé escola-família-e-comunidade é do gosto dos ianques, cuja
formação calvinista adora integrar e controlar todos os aparelhos ideológicos
de Estado.
Diante do exposto,
pergunto: quem mantém essa página tem certeza de que, na luta empreendida, quer
se valer da LDB? (útil que é ao Banco Mundial, ao neoliberalismo econômico e à
direita).
Agora abordo o segundo
tema: a denúncia de assédio. Esse tipo de denúncia faz com que eu me lembre do
caso Escola Base.
Em tempos de redes
sociais, neoliberalismo econômico, espetacularização, oba-oba de ativismos (que
sempre tentam convencer com base no grito, e não no uso da razão) e escândalos
(tempos em que o espaço virtual não vê limites entre o público e o privado),
basta que uma denúncia repetida à exaustão seja verdade aos olhos do público.
Eu, que sou licenciado em Letras, ex-morador de Teresópolis, mestre em Estudos
Literários e professor efetivo de uma rede pública, vejo com muita preocupação
o que fazem com a figura do professor, que é o criador das possibilidades de
construção de conhecimentos e, portanto, de novas visões sociais de mundo
(embora o currículo oculto, que é mil vezes pior do que o projeto Escola Sem
Partido, tire dele a liberdade de cátedra). (Sendo o professor o criador de
tais possibilidades, cabe a ele, com suas muitas referências bibliográficas,
reconhecer que a consciência política não pode ser doada nem colocada ou
enfiada na cabeça do aluno: assumir o contrário disso é insultar o jovem e
tentar fazer com que ele, que, como todo ser humano, é sugestionável e
vulnerável aos efeitos da função conativa da linguagem, de que fala Jakobson,
prenda-se a uma canga em forma de ativismo.) Pergunto: que PROVAS CABAIS tem a
página “Euclydes Terê Escola de Luta” para divulgar o nome de professores? (que,
embora eu não conheça, obviamente são meus colegas de profissão). É assim que
funciona a apuração da verdade? É assim que se faz a luta por justiça? Se (e
somente se) eles não são mencionados em BO nenhum, que direito tem a página de
atirar o nome deles à fogueira dessa forma? Mesmo se houvesse BO haveria iniquidade
no gesto de divulgar nomes, pois, em épocas de linchamentos virtual e físico,
fica em xeque a integridade: muitas pessoas acreditam em denúncias sem provas e
atacam os acusados. E, pelo visto, isso é feito com o conforto do anonimato.
Ora, não é verdade que a lei veda o anonimato? Não é essa uma condição da
liberdade de expressão? A consciência que menciona o ECA e a LDB para exigir
direitos e lutar por eles aparentemente é a mesma que não mostra coerência na
medida em que não segue a lei e, assim, pratica mais do suposto mal que
condena. Por que a página não revela o nome de quem por ela é responsável? Será
que ninguém percebe que esse tipo de divulgação, baseada sabe-se lá em que
“apuração” de fatos, é o caminho do pré-julgamento e da condenação sem provas?
No caso Escola Base, o delegado disse que o inquérito era a prova, mas no fim
eram falsas as acusações; no caso de Lula, ele chegou ao tribunal com o
veredicto já formado, sem direito a uma defesa justa. O professor, cuja
autoridade é meramente simbólica desde o escolanovismo, nunca teve a influência
de um intelectual orgânico (um formador de opinião; qualquer youtuber é mais respeitado do que o professor).
Agora, qualquer denúncia faz com que fique na lama o seu nome.
O servidor público já
tem muitos inimigos, por isso não precisa de mais um. Se os professores citados
realmente praticaram aquilo de que os acusam, então que respondam pelos atos só
depois de MUITA APURAÇÃO. Obviamente devem ser assegurados dois direitos: o de
ampla defesa e o direito ao contraditório. E devem ser respeitados dois
princípios: o de razoabilidade e o de proporcionalidade. Isso vale também para
as professorAs que vierem a ser alvo desse tipo de denúncia e para qualquer outra
mulher (que o diga a dubladora Tânia Gaidarj, que, infelizmente, já foi alvo de
uma covarde difamação).
Em plena pandemia, é a
bandeira da acusação SEM PROVAS CABAIS que a página escolheu?
Se (e somente se) é
verdade que uma das alunas tem um filho com um professor, ameaçar o cargo dele
é a última coisa que se deve fazer, pois a criança vai precisar de uma boa parte
do salário dele (reduzido que é pela mais-valia, é claro). Se (e somente se)
tais professores tiveram uma conduta que não se coaduna com a ética (a ética
verdadeira, e não a “ética” de RH de empresas, uma listinha de regrinhas
pragmáticas), que tenham o direito à defesa e ao aprendizado. O erro, segundo
Piaget, é parte fundamental do aprendizado. A Terra é habitada por seres
humanos, e não por anjos e santos.
Sinceramente: essa
página quer ganhar, na disputa de verdades, com base no grito, como quem tenta
“falar de mais alto”, para citar o padre Antônio Vieira, e muitos pastores
evangélicos reacionários são mestres da arte do grito. Quem quer lutar por
direitos políticos, sociais e econômicos deve lutar nos níveis meso e macro, e
não apenas personificar críticas e pessoalizar a luta no micronível. A luta,
aliás, não pode se limitar à educação escolar: a escola, sozinha, ao contrário
do que pregam teóricos em torres de marfim, presos ao otimismo pedagógico, não
vai melhorar a sociedade; por isso é preciso lutar pela melhora da
infraestrutura, formada pelas condições materiais de vida (habitação,
saneamento, transporte, alimentos, distribuição de água, luz e gás), que sofreram
uma melhora entre 2003 e 2014.
Obviamente a luta exige
conhecimento acadêmico aliado à empiria. Sem essas duas coisas, essa página
fará apenas o papel de inocente útil a um ativismo que ocupou uma escola que,
até onde sei (ou até onde penso saber), nunca foi ameaçada por ninguém por ninguém
ter cogitado de vender ou privatizar seu prédio.
Márcio
Alessandro de Oliveira, formado num curso EaD de licenciatura em Letras (Português
e Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor efetivo
de uma rede pública. Guarapari, ES, 30 de maio de 2020.
Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/0328708771235302
Referências:
CORRÊA,
Vera. Globalização e neoliberalismo:
O que isso tem a ver com você, professor?. Rio de Janeiro: Quartet, 2000.
FLORENTINO,
Adilson; MARTINS, Angela M. Souza; CARINO, Jonaedson; SÁ, Marcia Souto Maior
Mourão; SILVA, Marco; THOMAZ, Sueli Barbosa; WILKE, Valéria. Fundamentos da Educação I. Rio de
Janeiro: Fundação Cecierj, 2008.
MARTINS,
Angela M. Souza; SILVEIRA, Claudio; ARAUJO, Helena; CARINO, Jonaedson; THOMAZ,
Sueli Barbosa. Fundamentos da Educação II
(v.1). 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2008.
SANTOS,
Ana Lúcia Cardoso; GRUMBACH, Gilda Maria. Didática
para Licenciatura: Subsídios para a Prática de Ensino (v. 1 e v. 2). 2. ed
e 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2012.