sábado, 30 de maio de 2020

Carta aberta à página de Facebook “Euclydes Terê Escola de Luta”




“Nas falas das professoras sobre as mudanças na função social da escola pública nesta década persistiram as imagens já retratadas: insatisfação quanto às condições de trabalho docente (como baixos salários, aumento da jornada de trabalho, etc.) e relacionadas com a organização do processo de trabalho na escola (como relações de poder e controle, fragmentação e formas de resistência das professoras). Atribuíram a culpa à própria escola e a seus professores, o que equivale a culpar as vítimas.”

(Vera Corrêa, 2000, p. 119-20.)

Olá, responsável ou responsáveis pela supracitada página.
Não sei o nome de quem está aí do outro lado, mas deve ser aberto ao diálogo, que pressupõe sempre o monólogo. Quero tratar de dois temas: 1. o modo reducionista e superficial como são encarados o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Darcy Ribeiro; 2. o modo como acusam publicamente meus colegas de profissão.
Há uma reclamação, cujo tom é o de quem está revoltado, relativa à não-entrada de alunos. Estes teriam sido barrados por não usarem uniforme e teriam revistadas as mochilas. Usar o uniforme, não danificar o prédio, chegar, sempre que possível, à escola dentro dos horários estabelecidos, tudo isso são conteúdos atitudinais (esse é o termo técnico-científico da pedagogia). No nível pragmático (e só poderia ser em tal nível), o aluno pode e deve ser punido quando não usa uniforme.
Além disso, se o regimento da escola diz que o aluno deve entrar de uniforme, e foi dado um prazo razoável para ser adquirida a vestimenta, a coordenação e a direção, cuja autoridade não pode nem deve ser confundida com autoritarismo, podem, sim, impedir a entrada do aluno. A propósito: os órgãos colegiados, dos quais deve participar a comunidade escolar, devem saber disso; portanto, a comunidade deve acatar o regimento.
Lembrem-se de que, findo o Antigo Regime, o sujeito deixou de ser um servo para ser um cidadão, conforme a ideologia liberal (que, embora seja um dos esteios da burguesia, também é valorizada pelas correntes progressistas e de esquerda). Ora, o cidadão é um sujeito de direitos, mas também é um sujeito de DEVERES. Uma vez que crianças e adolescentes são seres inteligentes, isto é: seres dotados de cognição, linguagem e sentimentos, e não marionetes manipuláveis, sabem que estão sujeitos a penalidades previstas pelo próprio ECA, pelo regimento e pela autonomia dos servidores da escola (e vale lembrar que é crime desacatar servidor público no exercício da função dele). Não adianta choramingar, que essa é uma atitude infantil. Os alunos são sujeitos de deveres também, e não apenas sujeitos de direitos. Usar o ECA de modo superficial e reducionista é atitude típica de alunos que, como no romance profético 1984, de George Orwell, valem-se do poder que têm (aquele micropoder, de que fala Foucault) para colocar professores, coordenadores e diretores contra a parede num tempo em que é ameaçado o serviço público. Já fui vítima desse tipo de interpretação reducionista atribuída ao ECA. Não vejo diferença entre isso e a atitude dos adolescentes olavistas, que adoram tietar seu tão amado guru tanto quanto adoram tietar Bolsonaro e encher a boca para dizer que a Terra é plana. Tais adolescentes, que geralmente não são nem um pouco estudiosos, ameaçam o professor: acusam-no de doutrinação, fazem queixas em instâncias superiores, apresentam evidências duvidosas (como fotos tiradas sem o consentimento do docente, áudios gravados em aula sem autorização e imagens de câmeras) e fazem pressão para que o professor seja demitido, tarefa muito fácil em tempos de contratos temporários e pouquíssimos concursos para o provimento de cargos efetivos dos magistérios públicos.
Com relação ao modo superficial como essa página aborda a LDB, é possível afirmar que ela (a LDB) é cheia de contradições, típicas de uma sociedade dividida em classes, na qual as escolas particulares de renome mandam e desmandam nas leis relativas à educação escolar e no próprio CNE. Supondo (ou pressupondo) que os cabeças dessa página simpatizem com Darcy Ribeiro (que não era gabaritado para legislar sobre educação), devo me limitar a fazer as seguintes revelações: É desesperador notar que a Lei 13.395 contempla a comunidade (e, por tabela, as sagradas famílias) em seu parágrafo primeiro. Isso está de acordo com as políticas do Banco Mundial. Infelizmente, a atual LDB equivale àquela que foi idealizada por Darcy Ribeiro, e não ao texto que propusera o deputado Otávio Elísio (PMDB/MG). Refiro-me ao projeto de lei 1.258, de 1988, para o qual o relator escolhido foi o deputado Jorge Hage (PDT/BA), que “ouviu as entidades da sociedade civil e outros parlamentares e apresentou, em agosto de 1989, o primeiro substitutivo do Projeto Otávio Elísio, que contou com o apoio do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública” (MARTINS, 2008, p. 93). Infelizmente,

a vitória de Collor priorizou as propostas educacionais do empresariado industrial. No início de 1990, Jorge Hage apresentou o segundo substitutivo, mas os defensores dos interesses privados criaram uma série de mecanismos para que esse substitutivo não caminhasse na Câmara dos Deputados. Collor reuniu aliados para barrar o projeto do deputado Jorge Hage; assim, foram criados vários empecilhos que impediram a votação do projeto na Câmara dos Deputados. Em 1992, Darcy Ribeiro apresentou outro projeto de LDBEN, que também foi assinado por Maurício Correa (PDT/RJ) e Marco Maciel (PFL/PE). Logo em seguida, o projeto do deputado Jorge Hage foi retirado do Congresso, o projeto de Darcy Ribeiro foi votado e transformou-se na nova LDBEN, Lei 9.394, promulgada em 20 de dezembro de 1996 (MARTINS, 2008, p. 93).

Até hoje a LDB é conhecida como Lei Darcy Ribeiro. Reflete as contradições da educação pública brasileira e define a educação como dever do Estado e da família. Esta, é claro, é religiosa e tacanha, e por isso mesmo não respeita a liberdade de cátedra do professor. Para o azar dos professores progressistas, “as esperanças [...] de ter uma educação fundamentada, discutida e organizada sob os princípios da dimensão crítico-social foi abortada pela Lei Darcy, que não representa a vontade e o sonho dos educadores brasileiros” (THOMAZ; CARINO, 2008, p. 149). A integração que resulta no tripé escola-família-e-comunidade é do gosto dos ianques, cuja formação calvinista adora integrar e controlar todos os aparelhos ideológicos de Estado.
Diante do exposto, pergunto: quem mantém essa página tem certeza de que, na luta empreendida, quer se valer da LDB? (útil que é ao Banco Mundial, ao neoliberalismo econômico e à direita).
Agora abordo o segundo tema: a denúncia de assédio. Esse tipo de denúncia faz com que eu me lembre do caso Escola Base.
Em tempos de redes sociais, neoliberalismo econômico, espetacularização, oba-oba de ativismos (que sempre tentam convencer com base no grito, e não no uso da razão) e escândalos (tempos em que o espaço virtual não vê limites entre o público e o privado), basta que uma denúncia repetida à exaustão seja verdade aos olhos do público. Eu, que sou licenciado em Letras, ex-morador de Teresópolis, mestre em Estudos Literários e professor efetivo de uma rede pública, vejo com muita preocupação o que fazem com a figura do professor, que é o criador das possibilidades de construção de conhecimentos e, portanto, de novas visões sociais de mundo (embora o currículo oculto, que é mil vezes pior do que o projeto Escola Sem Partido, tire dele a liberdade de cátedra). (Sendo o professor o criador de tais possibilidades, cabe a ele, com suas muitas referências bibliográficas, reconhecer que a consciência política não pode ser doada nem colocada ou enfiada na cabeça do aluno: assumir o contrário disso é insultar o jovem e tentar fazer com que ele, que, como todo ser humano, é sugestionável e vulnerável aos efeitos da função conativa da linguagem, de que fala Jakobson, prenda-se a uma canga em forma de ativismo.) Pergunto: que PROVAS CABAIS tem a página “Euclydes Terê Escola de Luta” para divulgar o nome de professores? (que, embora eu não conheça, obviamente são meus colegas de profissão). É assim que funciona a apuração da verdade? É assim que se faz a luta por justiça? Se (e somente se) eles não são mencionados em BO nenhum, que direito tem a página de atirar o nome deles à fogueira dessa forma? Mesmo se houvesse BO haveria iniquidade no gesto de divulgar nomes, pois, em épocas de linchamentos virtual e físico, fica em xeque a integridade: muitas pessoas acreditam em denúncias sem provas e atacam os acusados. E, pelo visto, isso é feito com o conforto do anonimato. Ora, não é verdade que a lei veda o anonimato? Não é essa uma condição da liberdade de expressão? A consciência que menciona o ECA e a LDB para exigir direitos e lutar por eles aparentemente é a mesma que não mostra coerência na medida em que não segue a lei e, assim, pratica mais do suposto mal que condena. Por que a página não revela o nome de quem por ela é responsável? Será que ninguém percebe que esse tipo de divulgação, baseada sabe-se lá em que “apuração” de fatos, é o caminho do pré-julgamento e da condenação sem provas? No caso Escola Base, o delegado disse que o inquérito era a prova, mas no fim eram falsas as acusações; no caso de Lula, ele chegou ao tribunal com o veredicto já formado, sem direito a uma defesa justa. O professor, cuja autoridade é meramente simbólica desde o escolanovismo, nunca teve a influência de um intelectual orgânico (um formador de opinião; qualquer youtuber é mais respeitado do que o professor). Agora, qualquer denúncia faz com que fique na lama o seu nome.
O servidor público já tem muitos inimigos, por isso não precisa de mais um. Se os professores citados realmente praticaram aquilo de que os acusam, então que respondam pelos atos só depois de MUITA APURAÇÃO. Obviamente devem ser assegurados dois direitos: o de ampla defesa e o direito ao contraditório. E devem ser respeitados dois princípios: o de razoabilidade e o de proporcionalidade. Isso vale também para as professorAs que vierem a ser alvo desse tipo de denúncia e para qualquer outra mulher (que o diga a dubladora Tânia Gaidarj, que, infelizmente, já foi alvo de uma covarde difamação).
Em plena pandemia, é a bandeira da acusação SEM PROVAS CABAIS que a página escolheu?
Se (e somente se) é verdade que uma das alunas tem um filho com um professor, ameaçar o cargo dele é a última coisa que se deve fazer, pois a criança vai precisar de uma boa parte do salário dele (reduzido que é pela mais-valia, é claro). Se (e somente se) tais professores tiveram uma conduta que não se coaduna com a ética (a ética verdadeira, e não a “ética” de RH de empresas, uma listinha de regrinhas pragmáticas), que tenham o direito à defesa e ao aprendizado. O erro, segundo Piaget, é parte fundamental do aprendizado. A Terra é habitada por seres humanos, e não por anjos e santos.
Sinceramente: essa página quer ganhar, na disputa de verdades, com base no grito, como quem tenta “falar de mais alto”, para citar o padre Antônio Vieira, e muitos pastores evangélicos reacionários são mestres da arte do grito. Quem quer lutar por direitos políticos, sociais e econômicos deve lutar nos níveis meso e macro, e não apenas personificar críticas e pessoalizar a luta no micronível. A luta, aliás, não pode se limitar à educação escolar: a escola, sozinha, ao contrário do que pregam teóricos em torres de marfim, presos ao otimismo pedagógico, não vai melhorar a sociedade; por isso é preciso lutar pela melhora da infraestrutura, formada pelas condições materiais de vida (habitação, saneamento, transporte, alimentos, distribuição de água, luz e gás), que sofreram uma melhora entre 2003 e 2014.
Obviamente a luta exige conhecimento acadêmico aliado à empiria. Sem essas duas coisas, essa página fará apenas o papel de inocente útil a um ativismo que ocupou uma escola que, até onde sei (ou até onde penso saber), nunca foi ameaçada por ninguém por ninguém ter cogitado de vender ou privatizar seu prédio.

Márcio Alessandro de Oliveira, formado num curso EaD de licenciatura em Letras (Português e Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor efetivo de uma rede pública. Guarapari, ES, 30 de maio de 2020.

Currículo na Plataforma Lattes: http://lattes.cnpq.br/0328708771235302

Referências:

CORRÊA, Vera. Globalização e neoliberalismo: O que isso tem a ver com você, professor?. Rio de Janeiro: Quartet, 2000.

FLORENTINO, Adilson; MARTINS, Angela M. Souza; CARINO, Jonaedson; SÁ, Marcia Souto Maior Mourão; SILVA, Marco; THOMAZ, Sueli Barbosa; WILKE, Valéria. Fundamentos da Educação I. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2008.

MARTINS, Angela M. Souza; SILVEIRA, Claudio; ARAUJO, Helena; CARINO, Jonaedson; THOMAZ, Sueli Barbosa. Fundamentos da Educação II (v.1). 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2008.

SANTOS, Ana Lúcia Cardoso; GRUMBACH, Gilda Maria. Didática para Licenciatura: Subsídios para a Prática de Ensino (v. 1 e v. 2). 2. ed e 3. ed. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2012.

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