Professor: Márcio Alessandro de Oliveira.
Tema:
A formalidade e a informalidade.
Título: A formalidade e a informalidade: a norma
culta e a norma culta-padrão:
o padrão culto do idioma.
Pré-requisitos: 1. ter o português como língua
materna (a primeira língua, adquirida na infância); 2. saber os tipos de
variação linguística — sobretudo as variações diafásica e diastrática.
Objetivo geral: estabelecer as diferenças entre os níveis
de registro de duas formas de manifestação do pensamento completamente
diferentes: a fala e a escrita.
Objetivos específicos:
1. conceituar e exemplificar o registro
linguístico;
2. dividir os tipos de registro em dois
níveis: o formal e o informal;
3. subdividir o nível formal em culto e
erudito;
4. subdividir o nível informal em chulo e
coloquial;
5. reconhecer as diferenças entre a fala e
a escrita;
6. mostrar que o contexto de comunicação
e o gênero textual (falado ou escrito) condicionam a adequação e a inadequação
do nível de formalidade ou informalidade;
7. mostrar as diferentes maneiras de
dizer a mesma coisa;
8.demonstrar os efeitos de sentido de
cada nível de registro e de cada escolha de palavra;
9. mostrar que, quando há variação, há
avaliação e até preconceito linguístico.
INTRODUÇÃO
Que devemos entender por padrão?
Existe a unicidade dentro da pluralidade: o fato de nordestinos e gaúchos
conseguirem se entender prova essa unicidade. Trata-se da variação linguística
em contraste com a uniformidade linguística.
É interessante notar que são cognatas
as palavras pátria, padre, pai e padrão: têm a mesma
raiz. O padrão linguístico de um grupo de crianças de cinco anos vai ser
diferente do padrão de um grupo de enfermeiras. Tal padrão é o modelo ou a norma. Pessoas mais escolarizadas e
mais cultas tendem a seguir um padrão culto real. Este último padrão, por sua
vez, é o que mais se aproxima de um padrão ideal, defendido por gramáticos
normativistas. Sendo assim, podemos dizer que a norma culta é uma norma real,
isto é: um modelo realmente acatado ou seguido por falantes e redatores,
enquanto a norma culta-padrão é uma norma ideal ou idealizada: existe mais na
ideia do que na realidade. (O estudo da norma padrão enfrenta a questão da
nomenclatura ou das terminologias técnico-científicas. É que as expressões norma
culta e norma culta-padrão não são uma unanimidade entre os linguistas
profissionais; por isso, embora eu faça a distinção que acabei de estabelecer,
eu, que sou um reles professor de língua, e não um linguista, prefiro usar a
expressão padrão culto do idioma.)
Temos, portanto, a norma culta e a norma
culta-padrão: estamos entre o real e o ideal: existe a tensão entre a tradição gramatical
e a ruptura.
Na tensão entre a tradição e a
ruptura, às vezes o padrão culto dos falantes e dos redatores escolarizados e
até eruditos (tanto nas zonas urbanas quanto nas rurais) está de acordo com o
padrão ideal ou idealizado de Evanildo Bechara e outros gramáticos; às vezes,
no entanto, não está, de modo que podemos dizer que o padrão culto real é diferente
do padrão culto ideal ou idealizado. Se a realidade fosse diferente da que
estou descrevendo, ou a ela fosse oposta, eu estaria escrevendo em Latim.
A norma culta e a norma culta-padrão
“Comparando
a língua culta com a língua coloquial, é possível constatar
que, em certos aspectos, as diferenças entre as duas são bastante evidentes,
mas, em outros, os limites não são tão claros, ficando difícil, nesses casos,
definir uma ‘fronteira’ entre o que é culto e o que é coloquial.”
(Mauro Ferreira, 2007, p. 81.)
A norma culta é o modelo de língua verdadeiramente usado por
falantes e redatores. Já a norma culta-padrão é idealizada com base em textos
literários muito formais. Em resumo: a norma culta é real, ao passo que a norma
culta-padrão é ideal (ou seja: existe mais na ideia do que na realidade). Há
casos em que o uso real da língua corresponde ao ideal de um padrão culto muito
sofisticado, o que não anula as variações histórica, geográfica, sociocultural
e de classe social da língua.
Todo texto pode variar em nível de formalidade e em nível de
informalidade, ou seja: pode sofrer as variações diastrática e diafásica. A
primeira diz respeito às classes sociais e ao nível sociocultural; a segunda, à
situação, ao estilo da pessoa que fala ou escreve e ao grau de formalidade ou
informalidade do modo como ela se serve do idioma, conforme o esquema a seguir
(baseado na divisão feita pelos professores Liana Biar, Rafael Pinna e Bruno
Rabin):
Registro formal: do culto ao erudito;
Registro informal: do chulo ao
coloquial.
Exemplos (retirados do livro de
Mauro Ferreira):
Língua coloquial: |
Língua culta: |
Pronúncia
descuidada: “num sei”, “tá bão”. |
Pronúncia
mais cuidadosa: “não sei”, “está bom”. |
Ausência
de marcas de concordância: “Os menino vai bem”, “restou duas moedas”, “como
fica as regras?”. |
Presença
de marcas de concordância: “Os meninos vão bem”, “restaram duas moedas”,
“como ficam as regras?”. |
Uso
frequente de gírias. |
Ausência
de gírias. |
Tudo depende do contexto de comunicação
e da pessoa a quem se dirige a palavra (falada ou escrita). Em outras palavras:
a adequação e a inadequação do nível de registro (ou de estilo) dependem da
situação.
Observação: A língua falada é muito diferente da
língua escrita, pois escrever nunca é o mesmo que falar. Existe, portanto, uma
diferença entre a relação falante-ouvinte e a relação escritor-leitor.
Infelizmente, há quem pense que a língua falada é informal. Na verdade, pode
ser formal ou muito formal. Alguns falantes chegam a ser pedantes, prolixos e
pernósticos. Assim são alguns palestrantes. Por outro lado, é possível ser
culto sem prejudicar a clareza do que é dito de viva voz.
Outra questão é a da uniformidade de tratamento, que envolve
não só os pronomes de tratamento, tais como senhor, senhora
e Vossa
Excelência, mas também envolve o uso dos pronomes tu e você. Ninguém diz “Você
vieste!”, mas sim “Você veio!”.
Numa das próximas aulas, abordaremos os conceitos de
gramática, que, de certa forma, já estão nesta aula. Os principais gramáticos
do Brasil são Evanildo Bechara, Celso Cunha e Lindley Cintra. Rocha Lima,
Ataliba Castilho e Vanda Maria Elias são nomes quase tão importantes quanto os
outros três. (Pasquale Cipro Neto e Sérgio Nogueira não são gramáticos, nem
linguistas: são, no máximo, professores de língua, bons professores.) Destaco o
nome de Evanildo Bechara, autor da Moderna
Gramática Portuguesa, e o de Lindley Cintra e Celso Cunha, autores da Nova Gramática do Português Contemporâneo.
Ouso dizer que esses dois livros são as mais importantes gramáticas do país.
Em verdade, a gramática nem sempre (ou quase nunca) resolve
os problemas de quem quer falar e escrever bem. No caso de quem tem de escrever
com frequência, são necessárias algumas ferramentas de trabalho: Segundo o
professor Diógenes Magalhães, sobre a mesa do redator (que é quem redige, ou
seja: é quem escreve) devem estar os seguintes livros:
um dicionário;
um dicionário de regência verbal;
um dicionário de regência nominal;
alguns tira-dúvidas (os quais, infelizmente, não estão
necessariamente em dia com o conhecimento científico da Linguística, divulgado
pelos linguistas profissionais);
uma boa gramática;
um manual de estilo ou de Redação.
Acrescente-se à lista acima o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, disponível na
internet. É mantido pela Academia Brasileira de Letras. Dependendo do que
estiver escrevendo, o redator também precisará de um modelo do gênero textual
em que se enquadrará seu trabalho. (A respeito dos gêneros textuais e das
tipologias eu darei informações noutra aula.) Se eu, por exemplo, tiver de
redigir um ofício, e não houver um modelo nos manuais de estilo guardados em
minha biblioteca particular, terei de procurar um modelo em outras fontes. Isso
vale para trabalhos acadêmicos, razão pela qual é necessário ter à mão um
manual de metodologia científica e referências bibliográficas sobre o tema de
pesquisa, como as que estão no Google Acadêmico
e no Scielo. No caso dos acadêmicos,
serão necessárias algumas NBRs (Normas Brasileiras), que são feitas pela
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Como listar os livros que
consultei na minha pesquisa para a elaboração de um trabalho acadêmico? A NBR
6.023 é que determina o modo como o autor do trabalho vai fazer as referências.
Em alguns casos, chama-se um revisor ou mesmo um redator-fantasma (conhecido
nos E. U. A. como ghost writer), que
é um consertador de originais (isto é: um consertador de textos originais ou de
rascunhos). O pernambucano Diógenes Magalhães já fez o trabalho de consertador.
Palavras dele (2008, p. 64): “Durante muitos anos, ganhei a vida ‘consertando’
os escritos de sujeitos que eram obrigados a redigir, e nada conheciam da
técnica de redigir”. E completa: “direi que vivia de passar para linguagem
clara o que me era trazido em sintaxe confusa, em termos abstrusos, em forma de
redundâncias ou tautologias. Eu era, portanto, redator-fantasma” (2008, p. 65). Era, pois, um tratador de
originais.
(Uma observação: redigir é o mesmo que escrever, mas
escrever nem sempre é o mesmo que redigir. Poeta nenhum diz que redigiu um
poema: diz que o escreveu. Trata-se, outra vez, da diferença entre a técnica de
redigir e a arte de escrever. Em suma: estamos diante da diferença entre o
texto literário e o não-literário. Posso redigir um artigo de opinião, uma
notícia ou até mesmo o editorial de uma revista, porém não posso “redigir” um
poema nem um romance.)
Afirma o supracitado professor que o dicionário é o mais
importante dos livros usados pelo redator consciente da importância do seu
trabalho. Realmente, o dicionarista é um lexicógrafo. Ora, o léxico é o
conjunto de palavras de um idioma, e a lexicografia é a técnica ou a ciência de
produção de dicionário.
Agora, deixo com vocês os Textos I, II, III e IV. Explicam
melhor alguns pontos desta aula.
Texto I
Adequação
e inadequação linguística
Quando uma pessoa se
comunica com outra(s), para que esse ato se realize de forma eficiente, é
necessário que ela faça a adequação
da linguagem.
Há situações em que a
relação entre os interlocutores é mais descontraída, mais informal ou pessoal, casos em que fica mais adequado o emprego de
uma linguagem informal, mais “solta”. Outras vezes, essa relação é mais
impessoal, mais distanciada, o que requer uma linguagem mais formal, mais “cuidada”.
São vários os fatores
que, isoladamente ou combinados, levam o falante a adequar sua linguagem às
circunstâncias do ato de comunicação. Entre esses fatores destacam-se:
o interlocutor (não se fala do mesmo modo com um adulto e com uma
criança);
o assunto (não se fala sobre a morte de uma pessoa da mesma maneira
que se fala sobre a derrota do time de futebol);
o ambiente (não se fala do mesmo jeito em um templo religioso e em um
churrasco com amigos);
a relação falante-ouvinte (não se fala da mesma maneira com um amigo
e com um estranho; ou em uma relação social informal e em uma relação formal).
Em um ato de
comunicação, a influência desse e de outros fatores resulta num maior ou menor
grau de formalidade ou informalidade na linguagem.
(Mauro Ferreira. O universo da
linguagem. In: ______. Aprender e
praticar gramática. São Paulo: FTD, 2007, p. 82-3.)
Texto II
SANTOS
NOMES EM VÃO
Praxedes é gramático.
Aristarco também. Com esses nomes não poderiam ser cantores de rock. Os dois
trabalham num jornal. Praxedes despacha as questiúnculas à tarde. Aristarco, à
noite. Um jamais concordou com uma vírgula sequer do outro, e é lógico que seja
assim. Seguem correntes diversas. A gramática tem isso: é democrática.
Permitindo mil versões, dá a quem sustenta uma delas o prazer de vencer.
Praxedes é um santo
homem. Aristarco também. Assinam listas, compram rifas, ajudam quem precisa. E
são educados. A voz dos dois é mansa, quase um sussurro. Mas que ninguém se
atreva a discordar de um pronome colocado por Praxedes. Ou de uma crase posta
por Aristarco. Se a conversa ameaça escorregar para os verbos defectivos ou
para as partículas apassivadoras, melhor escapar enquanto dá. Porque aí cada um
deles desanda a bramir como um leão.
Para que os dois não se
matem, o chefe pôs cada um num horário. Praxedes, mais liberal (vendilhão,
segundo Aristarco), trabalha nos suplementos do jornal, que admitem uma
linguagem mais solta. Aristarco, ortodoxo (quadradão, segundo Praxedes), assume
as vírgulas dos editoriais e das páginas de política e economia. [...]
Sempre estiveram a um
passo do quebra-pau. Hoje, para festa dos ignorantes e dos mutiladores do
idioma, parece que finalmente vão dar esse passo. É dia de pagamento e eles se
encontram na fila do banco. Um intrigante vem pondo fogo nos dois há já um mês
e agora ninguém duvida: nunca saberemos quem é o melhor gramático, mas hoje
vamos descobrir quem é o mais eficiente no braço.
Aristarco toma a
iniciativa. Avança e despeja:
— Seu patife, biltre,
poltrão, pusilânime.
Praxedes responde à
altura:
— Seu panaca,
almofadinha, calhorda, caguincha.
Aristarco mete o dedo
no nariz de Praxedes:
— É a vossa
progenitora!
Praxedes toca o dedo no
nariz de Aristarco:
— É a sua mãe!
Engalfinham-se, rolam
pelo chão, esmurram-se.
Quando o segurança do
banco chega para apartar, é tarde, Praxedes e Aristarco
estão desmaiados um
sobre o outro, abraçados, como amigos depois de uma bebedeira.
O guarda pergunta à
torcida o que aconteceu. Um boy que viu tudo desde o início explica:
— Pra mim, esses cara
não é bom de bola. Eles começou a falá em estrangeiro, um estranhô o outro, os
dois foram se esquentando, esquentando, e aí aquele ali, ó, que também fala
brasileiro, pôs a mãe no meio. Levô uma bolacha e ficô doido: enfiô o braço no
focinho do outro. Aí os dois rolô no chão.
Para a sorte do boy,
Aristarco e Praxedes continuavam desacordados.
(Raul Drewnick, apud Mauro Ferreira. Aprender
e praticar gramática. São Paulo: FTD, 2007, p. 85-6.)
Texto III
Os galicismos, na
passagem do século XIX para o XX, e os anglicismos, na virada do terceiro
milênio, não têm a força destruidora tão temida pelos puristas e conservadores.
A língua portuguesa, em todo esse período, se manteve muito bem, obrigada,
falada e escrita por cada vez mais gente, produziu uma literatura reconhecida
mundialmente, é propagada também em nível internacional pelo grande prestígio
de que goza a música popular brasileira — entre tantas outras provas de sua
vitalidade. E a avalanche (ai, um galicismo!) de palavras estrangeiras tem de
ser analisada da perspectiva da dependência político-econômica (e
consequentemente cultural) do Brasil (e de Portugal) para com o centro
hegemônico mundial de poder, que são os Estados Unidos. Não adianta bradar
contra a “invasão” de palavras na língua portuguesa sem analisar essa
dependência. É querer eliminar os efeitos sem atacar as causas.
E essa enorme bobagem
de dizer que “brasileiro não sabe português” e que “só em Portugal se fala bem
português”? É uma piada de mau gosto, infelizmente transmitida de geração a
geração pelo ensino tradicional da gramática na escola.
O brasileiro sabe
português, sim. O que acontece é que nosso português é diferente do português
falado em Portugal. Quando dizemos que no Brasil se fala português, usamos esse
nome simplesmente por comodidade e por uma razão histórica, justamente a de
termos sido uma colônia de Portugal. Do ponto de vista linguístico, porém, a
língua falada no Brasil já tem uma gramática — isto é, tem regras de
funcionamento — que cada vez mais se diferencia da gramática da língua falada
em Portugal. Por isso os linguistas (os cientistas da linguagem) preferem usar
o termo português brasileiro, por ser mais preciso e marcar bem essa diferença.
(Marcos Bagno. A mitologia do preconceito
linguístico. In: ______. Preconceito
linguístico: o que é, como se faz. 54. ed. São Paulo: Edições Loyola,
1999-2011, p. 39-40.)
Texto IV
A
IMPORTÂNCIA DA LINGUÍSTICA EM SALA DE AULA
Em
sonhos, a Linguística veio até mim. Acompanhada pela gramática, disse que estou
no caminho certo: Eu me comporto não como linguista, mas como professor de
língua. Como tal, tenho o dever de estar em dia com os textos de divulgação
científica da Linguística como um sacerdote catedrático que faz cultivo do
conhecimento, e não como vendedor de aulas de escolinhas e cursinhos de fundo
de quintal. Minha deusa também disse que sou como o chão de fábrica, ao passo
que os linguistas profissionais são como a gerência. Também disse que a
gramática normativa, cujo objetivo principal nunca foi nem nunca será o de
facilitar a comunicação, mas sim o de discriminar e oprimir os que não a
conhecem, até descreve cientificamente bem o idioma. O problema dela é que impõe
um modelo linguístico que ela considera superior. Também disse que posso
continuar corrigindo os alunos, desde que eu deixe claro que seus “erros” são,
na verdade, desvios gramaticais, desvios que um dia a norma culta-padrão poderá
legitimar. Tome-se como exemplo o juiz Moro. Pode e deve ser corrigido. Afinal,
ninguém gosta de barbarismos ou silabadas em situações comunicativas formais. É
que elas, as situações formais, exigem monitoramento e esmero por parte do
falante. Isso vale não apenas para a pronúncia: vale para a sintaxe também.
Contudo, não se pode dizer que uma pessoa não sabe falar só porque não segue a
norma culta. Quem fala “errado” na verdade fala certo. Do ponto de vista
científico, o que o senso comum considera “erro” é apenas desvio da norma
culta-padrão, que está sempre sendo atualizada. Basta ver a gramática de
Bechara: já está na 38ª edição. Ela já não faz a distinção entre ONDE e AONDE,
defendida por puristas. Para a Linguística, erro é dizer “Penduradas varal no
camisas vi” no lugar de “Vi camisas penduradas no varal”. Na primeira
construção, não há coesão: as palavras não estão conectadas, por isso a frase é
agramatical; já na segunda sequência as palavras apresentam coesão. Dizer “As
camisa” é desvio ou incorreção, mas não é errado dizer “As camisa”. Dependendo
da situação comunicativa e do gênero textual, a gramática normativa não poderá
ser seguida à risca em nome do pragmatismo das relações sociais: uma fala muito
“correta” pode ser pedante. Baseado na gramática gerativista (que é bem
diferente da normativa), posso afirmar que ninguém diz “O moça” nem “A rapaz”. Isso, sim, seria
erro, e quem adquiriu o português na infância não fala nem escreve esses
termos. O analfabeto não diz essas coisas. Também não diz “Nós vim” nem “Nós comi”:
ele diz “Nós veio” e “Nós comeu”. Isso prova que ele sabe a diferença entre o
singular e o plural. O plural dele apenas se desvia da norma culta-padrão.
Isso, porém, não quer dizer que ele não saiba falar português. Ele é
constituído pela língua e na língua. Dizer o contrário é praticar violência
simbólica contra ele (acho que o conceito de violência simbólica é de Pierre
Bourdieu). Na verdade, ele sabe falar muito bem. Com a educação escolar, ele
poderá se apropriar das normas urbanas de prestígio. Estas, por sua vez, nem
sempre estão em consonância com Bechara nem com os postulados dos puristas. É
que Bechara e outros mantêm um escrúpulo filológico: postulam regras
gramaticais unicamente com base em textos literários, cujo estilo ainda é muito
artificial (a depender da época em que foram produzidos). Essa tradição vem da
Grécia, e é extremamente conservadora e elitista. Nem os profissionais da
palavra seguem à risca a norma culta-padrão, que é idealizada. As evidências
comprovam que textos muito monitorados já revelam construções que exigem que a
norma culta ideal faça concessões em nome da norma culta real. Muitas pessoas
devidamente letradas já falam e escrevem “RestOU duas moedas” e “Como ficA as
regras?” no lugar de “RestarAM duas moedas” e “Como ficAM as regras?”. Quando
usam a ordem inversa, usam o plural “errado”. Cabe à gramática normativa se
atualizar, pois esses “erros” são cometidos por pessoas letradas, e não acho
que sejam ignorantes. No caso dos meus alunos, cujas falas eu corrijo e cujos erros
de ortografia eu aponto, eu digo que podem falar “Nós veio” e “Nós vai”, mas
deixo claro que poderão sofrer preconceito linguístico. “Nós vai” é uma
variante estigmatizada, ao passo que “Nós vamos” é a variante de prestígio. A
frase sempre é variável. O que deve ser feito, no caso do juiz Sérgio Moro, é a
divulgação do fato de que não consegue usar a norma culta, o que é muito ruim
para um profissional da palavra que fala em momentos de formalidade.
Márcio Alessandro de Oliveira,
licenciado em Letras (Português e Literaturas) pela Universidade Federal
Fluminense, mestre em Estudos Literários pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e professor efetivo da rede estadual de ensino do Espírito Santo.
Serra, ES, 8/4/2019. Últimas alterações: Guarapari, ES, 21/2/2021.
Exercícios (dos quais dois foram tirados
do livro de Mauro Ferreira):[1]
1. Em cada situação a
seguir, indique se a linguagem utilizada está adequada ou inadequada.
a)
Um advogado, num tribunal de júri, diz: “Tá na cara que a testemunha tá
enrolando”.
( ) Adequada. ( ) Inadequada.
b)
Um advogado, num tribunal de júri, diz: “É evidente que a testemunha está
faltando com a verdade”.
(
) Adequada. ( ) Inadequada.
c)
Conversando com um amigo a respeito de um julgamento, um advogado afirma: “Tava
na cara que a testemunha tava enrolando”.
(
) Adequada. ( ) Inadequada.
d)
Num velório, uma pessoa, ao cumprimentar a viúva, diz: “É extremamente
doloroso, para mim, saber que seu marido bateu as botas”.
(
) Adequada. ( ) Inadequada.
e)
Um amigo diz ao outro, que costuma dirigir em alta velocidade: “Cuidado, a qualquer
hora, você bate as botas”.
(
) Adequada. ( ) Inadequada.
2. Numa sala de aula,
um aluno diz a um colega: “Poderias fazer a fineza de emprestar-me a tua
borracha?”. Essa situação é equivalente a
a) comparecer,
usando short e chinelos, a uma audiência com um promotor.
b) comparecer,
usando terno e gravata, a uma audiência com um promotor.
c) ir à praia de
terno e gravata.
d) ir à praia sem
camisa, de short e descalço.
e) ir a um baile
de gala usando camiseta.
3. Quais são os
autores das principais gramáticas do país?
a)
Augusto dos Anjos e Rainer Rilke.
b)
Mario Quintana, Celso Cunha e Sérgio Nogueira.
c)
Evanildo Bechara, Lindley Cintra e Celso Cunha.
d)
Machado de Assis e Cecília Meireles.
e)
Lygia Fagundes Telles e Evanildo Bechara.
4.
O que é lexicografia?
a)
É a técnica ou a ciência de produção de dicionário.
b)
É
arte literária.
c)
É
a técnica de Redação.
d)
É
arte de escrever.
e)
É
a historiografia.
CONCLUSÃO
Existem
pelo menos dois níveis de registro (ou de estilo, ou de linguagem): o formal e
o informal. O primeiro é dividido em culto e erudito; o segundo, em coloquial e
chulo. Obviamente é possível manter um meio-termo, de modo que é difícil, em
muitos casos, saber a diferença entre os níveis. O que me incomoda é o fato de
praticamente todos os materiais didáticos e boa parte dos que avaliam redações
do Enem partirem de um falso pressuposto ou de um falso princípio, a saber: o
de que a fala é sempre e obrigatoriamente informal. Ora, isso é um despautério!
Existem falas formais tanto quanto existem escritos informais! No que diz
respeito à escolha de palavras e aos efeitos que tal escolha causa (dos quais o
pedantismo é um dos mais conhecidos), precisamos entender que a palavra AÍ,
por exemplo, encontra amparo em qualquer situação e em qualquer nível de
registro ou de linguagem, e isso vale tanto para a língua falada quanto para a
língua escrita. O que não pode haver é a incompatibilidade ou a mistura
incompatível de registros, como o uso de gírias e bordões usados por
jornalistas que, no mesmo escrito, inserem termos estrambóticos ou termos
técnico-científicos.
Existem
outras divisões: linguagem jornalística, linguagem literária, linguagem
técnica, linguagem familiar, linguagem infantil. Há uma diferença, por exemplo,
entre a expressão fazer xixi e o
verbo urinar. Também existem três
vocabulários: o ativo, que usamos com muita frequência, o passivo, que não
usamos, mas reconhecemos, e o ignoto, que não conhecemos, ou seja: nós o
ignoramos. No vocabulário ignoto estão os arcaísmos, os preciosismos e os
pedantismos. Tudo isso, é claro, exige estudos que talvez vão além das
possibilidades desta aula.
E
o que dizer dos estrangeirismos ou empréstimos? (tais como latinismos,
galicismos, anglicismos e niponismos). Um exemplo de niponismo é a palavra karaokê; outro exemplo é a palavra tsunami (que quer dizer maremoto). E
ainda restam os idiomatismos (ou idiotismos) e os provérbios (as expressões
idiomáticas e os ditados populares).
Na
linguagem chula (ou no registro chulo), encontramos silabadas, solecismos,
gírias e palavrões.
Contudo,
há coisas que não se dizem, mesmo que estejam de acordo com o padrão culto do
idioma, como ofensas e outras falhas de psicologia que denotam ou demonstram
falta de circunspecção ou de modalização do discurso (para usar a expressão
pedantesca dos linguistas). Dizer “Vá se catar!”, por exemplo, não é usar
palavras de calão, mas é grosseria. (A circunspecção, como vocês sabem, é o
controle das emoções.) E isso, é claro, tem que ver com a incompatibilidade de
registros, que é o que acontece quando uma pessoa começa um texto com gírias e
em algum ponto oferece ao leitor um vocabulário rebuscado, como se tal
vocabulário fosse um fim em si mesmo ou se por si só já tivesse um valor
inestimável e digno de prestígio.
Não
podemos negar que tudo isso prova a existência da variação linguística — e a
avaliação é consequência da variação, pois que, assim como somos julgados em função das
roupas que vestimos, somos julgados pelas escolhas que fazemos na hora de falar
e no momento em que leem o que por nós foi escrito; e ninguém vai a uma entrevista de
emprego com trajes que se usam na praia. Naquele tipo de entrevista, usamos
roupas e palavras que não usamos em outras situações.
Não
é por acaso que existe o preconceito linguístico. Quem escolher dizer “Framengo” no lugar de “Flamengo” correrá o risco de ser
discriminado, e quem diz “Lamento que seu marido tenha batido as botas” num
velório, mesmo que siga o padrão culto do idioma, causa um efeito muito
desagradável. O sentido é sempre um efeito, porque é sempre um produto da
interação verbal entre dois ou mais interlocutores, isto é: entre duas ou mais
pessoas que conversam. Se eu pergunto a um aluno “Você está bem?”, eu gero um
efeito; já se um médico faz a mesma pergunta a um paciente durante um exame
específico, o efeito da pergunta é outro, ainda que o significado seja,
basicamente, o mesmo. (O significado é estático e dicionarizado, enquanto o
sentido é um efeito único no tempo e no espaço, no momento da enunciação, que
pode ser falada ou escrita.)
Um
exemplo de modalização: Numa loja, um cliente diz: “Eu queria saber o preço da
camisa”. O “queria” fica no lugar do “quero”. Modalizar o discurso é, de certa
forma, medir as palavras.
Alguns
exemplos demonstram as diferenças entre um registro mais coloquial e outro mais
culto. Exemplo: Ontem esteve aqui a mulher que eu não sei o nome. O padrão mais
erudito, por ser um modelo muito formal, prefere que a pessoa diga “Ontem
esteve aqui a mulher cujo nome eu não sei”.
Por
fim, quero lembrar o que foi dito na aula sobre mitos e lendas, a saber: mito é
também uma mentira com valor de verdade, e ultimamente tem circulado o seguinte
mito: basta comunicar ou basta que haja compreensão mútua. Trata-se do mito do
vale-tudo linguístico. Ora, como já disse o linguista Marcos Bagno, os
linguistas profissionais nunca afirmaram isso, e os bons professores de língua
(que não são obrigatoriamente linguistas) podem e devem combater tal mito, que
é um absurdo.
Referências:
ABRAÇADO,
Jussara; AMORIM, Carmelita Minelio da Silva; ROCHA, Lúcia Helena Peyroton
da. Aula 1 – Nossa língua normal: por um
ensino de língua portuguesa centrado no uso. In: ______. Linguística IV. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2016.
AMORIM,
Monika Benttenmüller; GONÇALVES, José Carlos.
Aula 1 – Português: Nossa Língua Materna? In: Português VIII. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2016.
BAGNO,
Marcos. A mitologia do preconceito linguístico. In: ______. Preconceito linguístico: o que é, como
se faz. 54. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999-2011, p. 39-40.
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Gramática de bolso do português
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Nada na língua é por acaso: por uma
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[1] Gabarito: Questão 1: a: Inadequada.
b: Adequada. c: Adequada. d: Inadequada.
e: Adequada. Questão 2: c. Questão 3: c. Questão 4: a.
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